Sonhei
que um boi pastava grama rala em meio à areia de um deserto;
e ele defecava por ali seu esterco verde que ia adubando o deserto;
e no esterco havia um grande verme.
E havia também um cão que ficava em cima de um monte de areia
vigiando o boi,
e o cão descia e rolava no esterco e dele comia
e comia o verme também,
mas o verme não morria e vivia dentro do boi e do cão.
Sonhei então
que nesse deserto haviam se formado três filas de pessoas;
Uma fila era enorme, uma fila era grande e uma outra fila era pequena,
e as três filas pareciam rumar cada uma à uma porta diferente.
Na fila enorme
haviam homens e mulheres
e pareciam ter eles bilhetes na mão
e iam felizes como quem está na fila para ir à um show,
a maioria eram alegres e brincalhões, alguns estavam entediados e uns poucos sérios;
mas todos eles estavam sem calças porque as haviam perdido,
fato que à alguns constrangiam, mas à maioria era motivo de brincadeiras,
ao que em suas nádegas estava escrito
como se à força de correiadas e chibatadas:
“ordem e progresso”.
E lá à frente da fila enorme ia o boi,
e o boi mugia: “diiiveeeersão!”
Na fila grande
haviam homens e mulheres
e eram como palhaços, estavam fantasiados e coloridos,
uns eram mímicos, outros agiam como marionetes,
uns eram irônicos, alguns cômicos, outros estúpidos...
e eles estavam todos sem camisas
porque as tiraram para poder trocar,
e tinham no corpo escrito como com tinta de propaganda:
no peito escrito “promessa”, e nas costas escrito “interesse”.
E lá na frente dessa fila grande ia o cão,
e o cão latia: “sufrágio! sufrágio! sufrágio!”
Na fila pequena
haviam homens e mulheres
e eram como se fosse pessoas importantes e sérias,
todos vestiam roupas caras e faziam poses de enorme dignidade,
mas não mostravam o rosto, coberto que estavam por véus negros
onde se podia ler escrito em letras douradas:
“Poder e Respeito”.
E na frente dessa fila pequena estava o verme.
e o verme secretava com ajuda de um microfone: “deeeeemocraciaaaaaa!”
E sonhei
que as três filas seguiam para três portas:
A fila enorme rumava para a porta de um abatedouro disfarçado de curral.
A fila grande rumava para a porta de um tribunal disfarçado de circo.
A fila pequena não rumava, mas já havia atravessado a porta de um luxuoso palácio.
E na porta dos primeiros estava inscrito: “trabalho, família, pão”;
E na porta dos segundos estava inscrito: “teatro, força, propriedade”;
E na porta dos terceiros estava inscrito: “tradição, fartura, poder”.
E no sonho
eu me aproximei de uma praça no meio daquele deserto,
e lá havia uma urna funerária
e de dentro dela suas cinzas falava com uma voz digital, dizendo:
“Tudo na normalidade...
Estes são os caminhos da república...
Estas filas representam democracia...
Festa do povo...
A política é o espelho da sociedade...
A palavra de hoje é ‘pragmatia’...”
E ao lado da urna havia uma pessoa estranha,
e ela me parecia estranha e me parecia conhecida,
ao que eu a chamei de profeta-professor.
E o estranho me falou, assim que a voz digital da urna cessou,
disse-me então como estranho profeta:
“Se no esterco se sujar, gostarão de ti...
Se do verme não se enojar, gostarão de ti...
Mas é possível não se corromper, e então eles te amaldiçoarão em silêncio,
e em público será chamado de tolo e hipócrita...
Porque eles, os cães e os vermes criaram outra forma de pensar,
confundiram por má-fé pragmatia e hipocrisia,
e hoje os hipócritas são pragmáticos e os pragmáticos hipócritas
e o esclarecimento é tolice
e a tolice celebrada como informação;
Pois eles falaram pelas bocas dos religiosos e dos intelectuais,
eles falaram pelas bocas dos jornalistas e dos comediantes...”
E lá no deserto a fila enorme andava rápido, e o boi pastava;
E a fila grande andava lenta, e o cão rolava;
E a fila pequena não era fila, mas uma ciranda de roda, e o verme se contorcia
e se deleitava em prazer no seu próprio visgo.
Então disse-me o estranho como professor:
“O que não deixa sujar,
O que não deixa adoecer,
Imuniza o boi, purga o cão e mata o verme:
Educação & Amizade & Prosperidade...”
E lá no deserto os da fila enorme gargalharam dementemente, e o boi se assustou;
E os da fila grande riram nervosamente com escárnio, e o cão rosnou e latiu alto;
E os da fila pequena estavam sérios, e o verme se contorceu de raiva!
E no sonho então
o boi com seus chifres atacou o estranho
e mugiu: “subversivo, rebelde, satânico...”,
o cão com suas presas defendeu a urna atacando o estranho
e latiu: “anarquista, desordeiro, irreverente...”,
o verme com sua astúcia penetrou no corpo estraçalhado do estranho
e verbalizou: “ridículo, desinformado, rancoroso...”
E depois de ter feito isso os três alegres de seu jeito comemoraram, em festa,
e o verme com seriedade contou ao boi em forma de noticiário:
que o verme é servo do boi e o nutre e preserva;
e o cão com carinho contou ao boi em forma de novela:
que o cão é quem defende o boi dos perigos do deserto e lida com seus dejetos;
e então o boi com canções grotescas e piadas agradeceu à eles
e pediu ao cão e ao verme em forma de oração:
que lhe desse a educação para trabalhar e ganhar dinheiro,
e a amizade para com aqueles que estavam próximos dele,
e a prosperidade do saneamento das fomes...
E assim o verme e o cão
lhe deram a competição, o patriotismo e os venenos,
o emprego, o futebol e o álcool...
E o boi se sentiu como o rei do deserto
e pensou consigo que dali não queria sair mesmo,
pois pastava grama magra com areia suja e água poluída
mas tinha a lei, a segurança e a diversão,
e tinha no cão e no verme amigos dedicados que o protegiam de outros bois,
e assim foi, crescendo e multiplicando, em corpo e miséria...
E no fim do sonho já
me vi só na praça deserta com o cadáver despedaçado e corroído do estranho,
enquanto uma enorme tempestade de poeira e lixo se levantava no céu;
Então o cadáver ainda murmurou para mm:
“É certo estar errado? É errado estar certo?”
E ainda em um último suspiro indagou:
“É justo ser injusto?...”
E era um dia triste, feio e onde não havia respostas para nada...
Então eu acordei! E era Dia de Eleição!