"Pedras, plantas e outros caminhos" é um documentário que conta a história de um AT (Acompanhamento Terapêutico) feito por Thais, a acompanhante, a Ney, o acompanhado. O filme cartografa encontros, agenciamentos coletivos que foram tecendo e se tecendo no vínculo entre a acompanhante e o acompanhado: gestos, tons, olhares, risos, gritos, cantos, ventos, conversas, plantas, pedras... estórias que compõem esta intensa e difícil busca de produção de cuidado e autocuidado em saúde mental, acontecendo ali onde vive o acompanhado, na rua, tendo ele um transtorno mental grave e fazendo uso prejudicial de drogas. Trata-se de uma complexidade em processo, de onde o filme foi apenas um recorte, um traçado a respeito de uma experiência clínica, e que somente poderia ser contada de uma forma poética. O filme funciona como intercessor para que se possa contar esta exitosa experiência de cuidado a céu aberto. O que se espera é que o documentário possa fazer proliferar outros saberes e práticas de cuidado e reinserção psicossocial, funcionando como um dispositivo ético, estético e político de resistência e produção de subjetividade e cuidado em saúde mental.
Este filme foi realizado pelo Coletivo de ATs com a coordenação do prof. dr. Ricardo Wagner Machado da Silveira do Instituto de Psicologia - IPUFU; em parceria com a equipe da TV Universitária, com a produção de Sheila Nogueira; trilha sonora do Grupo de Percussão da UFU com a direção do prof. dr. Cesar Adriano Traldi do curso de Música.
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Assistindo o documentário sobre o
atendimento psicológico de Acompanhamento Terapêutico (AT) desenvolvido por
estudantes da Universidade Federal de Uberlândia, o qual gira em torno da
figura do morador de rua Ney que habita nas imediações da Praça da Igreja de
São Cristovão no Bairro Brasil, tive muita coisa para pensar.
Gostaria primeiramente deixar claro que não
sou um terapeuta, me atenho ao lado filosófico e espiritual da situação humana,
então tudo que direi aqui não passa de “teorias”, não haverá, para muitos, nada
de prático, como o precioso trabalho executado pelos membros do Coletivo de ATs
e seus esforços em divulgar seus métodos. Minha reflexão circundará a situação
humana e procurará estender esse exercício filosófico à sociedade, para por fim
ser um material de crítica social e daí ter alguma função, que seja pelo menos
psicológica.
Morando no Bairro Brasil, cresci
frequentando com meus pais a Igreja de São Cristovão. Ali acompanhei desde cedo
a triste sina existencial do menino Ney, e ao longo dos anos, mesmo não
comparecendo frequentemente à igreja, vejo constantemente o Ney pelas ruas do
bairro, aqui e ali. Noticias de sua condição ainda me chegam em casa, entre uma
conversa e outra com meu pai ou até com amigos e comerciantes das imediações.
Do pouco que sei da vida do Ney é que cedo
ele começou a usar narcóticos, tal iniciação, em minhas lembranças, parece ter
sido uma espécie de constatação de certa forma sem escândalos na comunidade da
igreja, da qual seu núcleo familiar é vizinho. Lembro de um dia meu pai citar
que o Ney estava “afundando na droga!”,
ou algo assim, isso a cerca de uns quinze anos atrás, se a memória não me
engana.
De lá para cá o degradamento humano do rapaz
saltou aos olhos. Dissidências com a família, sua avó, que pelas línguas
alheias era um relacionamento tumultuado. Internações e recaídas até que ele
“saiu de casa”, mas nunca saiu das imediações da praça.
Ao longo desse tempo, desde sua tal “iniciação no mundo das drogas” até hoje,
o ambiente dessa espécie de submundo sofreu uma alteração terrível e com ela
toda nossa sociedade, quando as plantas começaram a ser substituídas por pedras
na vida dos adictos. Nossa sociedade descobriu muito tarde, anunciado um
dia finalmente na TV domingo à noite sobre a nova epidemia de drogas
representada pelo Crack.
Depois desses tempos, o álcool, o cigarro e
a cannabis pareceram ser rebaixados em seu status de moléstia social e familiar
e o poder deste subproduto do refino da cocaína nivelou os seus usuários à um
nível quase inumano. O Ney é uma dessas pessoas, que por sorte ou azar da vida,
sobrevive ao longo de muitos anos carregando o fardo pesadíssimo do vício em
Crack.
Se toda nossa sociedade acordou tarde para
os perigos do Crack, a comunidade em volta da Igreja de São Cristovão não só
perdeu também a hora de acordar, como dormiu profundamente dentro de um
pesadelo que zelou com olhos cegos de indiferença ou tamanha inocência
provinciana, que hoje este rapaz se tornou a materialização da vergonha de
nossa inconsciência social.
Digo isso porque o Ney cresceu e diminui ao
lado de todos nós, praticamente dentro da Igreja. Neste período passaram por
ali talvez uma dezena de Padres, uma centena de participantes costumazes da
paroquia, e mais milhares e milhares de pessoas em busca de Deus, e mesmo
assim, pouco se fez para desviar o Ney de um caminho tão nefasto. Alguns tentaram
ajudá-lo sim, mas sempre prevaleceu aquilo que todos viam como a escolha
pessoal dele, e não a vontade das pessoas que o tentaram ajudar.
É claro, não estou aqui culpando ninguém da
Igreja pelo que acontece à vida deste rapaz, mas me abisma (e podem dizer que
sou cínico ao dizer isso) ele ter se tornado o que se tornou diante de toda uma
comunidade cristã organizada.
Isso me lembra um mote que certa vez ouvi em
um filme que assisti: “Por que é tão difícil salvar alguém?”
Todos temos respostas para isso, desde as
preocupações com nossas vidas, os problemas que temos dentro de nossas próprias
casas, o fato de alguém não querer ser “salvo”, a periculosidade que gira em
torno dessa situação especifica, onde há também a figura do traficante, das bocas
de fumo, e a sempre presente covardia humana escondida sob todas essas, até
justas, respostas.
Esse é apenas um ponto de minha reflexão,
uma vergonhosa mea-culpa que não leva
a nada, como toda teoria, mas que capacita a reconhecermos que o Ney não é só
uma caso de mais uma pessoas estraçalhada pelo vício em drogas, mas é um
produto de nossa própria incapacidade ou coragem de fazer uma coisa melhor pelas
outras pessoas, mesmo que elas não queiram, mesmo que elas sejam fracas em
vontade e que a dependência seja tão forte, etc. Existe sempre algo a se fazer,
e em situações como essa a palavra Coragem sempre surge no meio da práxis, por
isso me admirou profundamente o processo levado a cabo pela Acompanhante
Terapeuta do Ney, Tais.
No simples ato de estar presente, de se
aproximar que não fosse para dar esmolas ou rir junto ou ridicularizá-lo, ela
tenta dar ao rapaz uma coisa que talvez ele nunca teve, um ponto humano para se
apegar. O acompanhamento, eu vi assim e me corrijam se eu estiver errado, é uma
espécie de ancoramento à realidade de um indivíduo que se desfez.
Estar ali, chamar para conversar, cantar
junto, denota uma situação imprescindível para qualquer um recuperar sua
humanidade perdida, pois a humanidade de cada um de nós nunca é sentida quando
estamos sozinhos, a humanidade é um sentido coletivo que carregamos
individualmente, uma parceria no mínimo, e foi isso o que talvez nenhum de nós
da comunidade nunca tenhamos feito pelo Ney.
Esta menina magrinha, de olhos extremamente
tristes, mas que mostram um espírito profundo, é uma espécie de lume no meio de
toda escuridão e tortuosa irrealidade que se apoderou da mente do Ney, e lhe
disse, em silêncio: “Olha aqui Ney, olhe
para mim, fale comigo, eu sou uma porta aberta por onde você pode voltar para o
mundo…”
Mas mais do que isso em relação a ele, ela é
também um sinal para todos nós, para todos os que passam diariamente por aquela
praça, por aquela igreja, ela fala também com nossos próprios problemas, com a
doença social que carregamos dentro de nós, talvez muito mais nociva do que o
vício em drogas, ela representa, junto com seu Coletivo todo, uma salvação para
nossa condição humana também.
Philip K. Dick escreveu em uma nota final de
seu livro “O Homem Duplo” que todos
os que “brincam” com a vida são finalmente punidos (Dick, pp.305-307),
ele se refere ao uso abusivo de drogas, e dita que o “inimigo”, o punidor
desses, foi a própria escolha errada
de brincar com a vida. No caso do Ney não sei se isso vale, pois por mais que
me lembre do rapaz feliz e bem vestido cantando músicas sertanejas nas festas
da igreja, parece que quem brincou nesse caso foi a nossa comunidade. E qual
será nossa punição?
Sempre quando vejo o semblante do Ney, um
ser humano desfigurado, alguém que facilmente poderíamos dizer que teve sua
alma despedaçada pelos tóxicos e agora vive como um animal pelas ruas, sempre
sem camisa, rindo e conversando sozinho, dormindo sob marquises… um frio corre na
espinha e sinto que nossa punição…, não, a minha, é que também perdi um pouco
de minha alma ao não ter feito nada por ele.
Se é verdade que somos seres coletivos, que
a humanidade somos cada um de nós em uma soma final, então a dor e confusão de cada indivíduo humano despedaçado pelas drogas é também a dor e confusão de todos.
Em que tragédia estamos metidos!
Essa tragédia então é maior quando de
repente não estamos falando mais do Ney, mas de nossa sociedade inteira,
estamos falando sobre o “problema das
drogas”, e as coisas se tornam muito mais amplas e complexas.
O método de AT revela uma simplificação, ele
não quer mudar o mundo, isso não é possível. E em organizações de Ajuda em
Grupo, as primeiras coisas que aprendemos é reconhecer nossa doença ou
deficiência moral, entendermos que podemos ajudar a nós mesmo, um dia de cada
vez, etc.
Entender que mudando a nós mesmos mudaremos
o mundo é uma coisa aliviante, pois o que há de menos abstrato nesta equação é
o indivíduo, somos nós mesmos, e assim o indivíduo se abre também como porta de
mudança para a sociedade. Salvar um é salvar todos!
Como disse William Burroughs no livro “Almoço Nu”, “o viciado nas ruas… é o único fator insubstituível na equação” da
droga” (Burroughs,
p.245 e ss.), ou seja, quando não mais houver dependentes não
haverá tráfico de drogas, e em uma geração pode-se acabar com os problemas das
drogas, teoricamente.
E aí podem rir da simplicidade da
constatação, mas por que ainda não o fizemos? Vão dizer, por justamente não ser
simples assim?! Mas é!
Para encurtar esse ponto de reflexão, posso
dizer que existem medicamentos, somados à terapias que podem livrar as pessoas
de qualquer vício, até do Crack, o que falta é interesse de cima, pois gira em
torno das drogas muito, muito dinheiro, dinheiro legal e principalmente,
dinheiro ilegal. E nosso sono vai gerando um monstro cada vez mais forte!
De uma forma muito contundente a existência
do Ney adentra e se confunde com a existência de cada um de nós, se tornando arquetípica a situação desse rapaz diante nossa comunidade principalmente, e eu
enquanto pensador não posso me refutar a pensar sobre isso.
A doença que ele carrega, seu definhamento
público, passa por um problema de saúde física particular a um problema de
saúde mental de todos nós, um problema espiritual. Vejo a sincronia destas
relações se desenvolverem ao lado de minha vida, de minha família e meu lugar
de existência com severidade, como sempre enxergo as questões psíquicas que me
envolvem, pois é disso que tiro o substrato para minhas reflexões e meu autoconhecimento.
O Ney faz parte de mim, e gostaria que os meus vizinhos, o pessoal da igreja de
meus pais e todos no bairro pudessem ter a sensibilidade de refletir um dia
assim. “Gostaria”, não sei se um dia
um ou dois por aqui irão. Talvez existam os que tenham feito isso…
Uma pessoa usa droga para “anestesiar” uma dor, e todos nós temos
uma “dor” latente, física ou
existencial. Para aliviar a dor alguns usam televisão, outros cigarros, uns
usam sexo, outros comida, há aqueles que usam esportes ou o trabalho para não
se concentrarem na dor, alguns ainda fazem uso da religião ou do ateísmo
dialético, mas todos são viciados em algo para suprimir a dor constante que
surge com a vida.
Ela está aí, a cada momento, uma dor em
forma de preocupações financeiras, uma dor constante em forma de carência amorosa,
uma dor na forma de pobreza ou riqueza, uma dor que toma a forma de decepção
cotidiana, mas é sempre a mesma, e o Ney a cantou no documentário com o nome de
VAZIO, “o vazio que mora no fundo do meu coração”. É
essa a fonte da dor humana perene, é ele que nós leva às drogas ou a qualquer
compulsão.
Talvez seja este vazio, mais do que o sangue
ou a forma, que nos ligue a todos como seres humanos, como humanidade, e o
vazio é sempre fome, e é o que ao final ligue o povo ao líder, o viciado ao
traficante, fome. E fome é fome de poder.
Poder é mandar, sim, mas poder é também
potência, então o vazio humano se revela como uma eterna incompletude, uma
constante tendência de reconhecer que podemos ser mais, que devíamos ter mais,
e psicologicamente vai até ao ilimitado, o infinito que é Deus. Vida e
principalmente morte bailam em torno desta questão da potência humana.
Acerca disto então, como bem lembra o
professor Emmanuel Carneiro Leão falando sobre “Juventude e Tóxico”, há um “problema do homem” e não um “problema da droga”, onde “na droga se põe em jogo a própria humanidade
do homem” (Leão,
p.41).
O professor faz uma profunda reflexão sobre
a condição humana que não só cabe aqui então para refletir sobre a questão
particular que estou falando, mas se abre à questão existencial humana de tal
forma que poderiamos perder o rumo da reflexão se formos propensos a querer
continuar cobrindo o sol com peneiras. Mas como eu disse que falaria de teoria,
e não de prática imediata, como o trabalho do AT, entro no assunto. Mas não se
engane o leitor, da teoria pode surgir uma prática correta também, e isso é a
tarefa do pensamento racional que pauta qualquer ciência.
A sociedade de nossa época vive sob a
premissa da equação SABER = CONTROLAR = PODER, tudo que é humano está submetido
a isso hoje em dia, desde nossa própria individualidade até nossa comunidade, e
quanto mais implementamos isso na vida, menos LIBERDADE temos! Dentro disso se
choca principalmente a questão da JOVIALIDADE, dos projetos de vida de alguém
feitos enquanto se é jovem, no momento quando dá de cara com a realidade do
mundo de hoje, a equação acima e a falta de liberdade impõem-nos então a
DESUMANIDADE. Para se entender onde entra as drogas e seus efeitos sociais e
existencias em tudo isso é um caminho “psíquico-lógico”. Cito totalmente o
professor Carneiro Leão para fazê-los entender, ele pergunta:
“Como
a juventude procura realizar a jovialidade no mundo de hoje?”
E nos dá esta reflexão final:
“Não encontrando espaço para de expansão para suas
possibilidades de futuro,a juventude contesta e contradefine o
sistema de controle em todos os níveis da linguagem: no verbal e
imaginativo, no gestual e perceptivo, no situacional e coletivo. Pois é aqui, na
dinâmica desta contradefinição, que se insere o uso das drogas e
entorpecentes. O sentido hermenêutico do tóxico é, portanto, essencialmente
ambíguo. Articula-se em duas dimensões. Mais profundamente exprime a dinamização de um projeto de jovialidade e de futuro. Mais na
superfície, nos caminhos de
sua concretização situacional, desvirtua-se num
compromisso com a própria essência da sociedade afluente e da
subjetividade moderna. Pois participa da mesma atitude de controle e domínio. É
o esforço de controlar a própria jovialidade e de dominar o próprio
futuro. É a tentativa de eliminar por uma técnica o próprio mistério do
homem. O tóxico, que deveria ser meio de libertação da jovialidade, se
transforma, pela dependência, que induz, na pior escravidão. Na escravidão
de uma liberdade aparente e artificial. A conversão se torna aversão
à jovialidade, a libertação se torna fuga do futuro, o misticismo se torna
perda do destino próprio.” (Leão,
pp.42-43)
Nesta reflexão podemos então notar não
apenas a condição de vida que o Ney demonstra, mas também a da comunidade que o
cerca, e de toda nossa sociedade. Todos nós participes inconscientes em maior
ou menor grau da destruição do futuro, pelo silêncio e conivência, na questão
das drogas, estamos enterrando por nossa covardia, a renovação do mundo.
Espiritualmente poderíamos dizer, como convém toda essa situação sincrônica,
estamos assassinando Cristo constantemente no suplício da cruz.
Digo isso não como um subterfúgio alegórico para causar polêmica, mas se entendermos psicologicamente o que vem a ser o símbolo de
Cristo no mundo, nossa Personalidade Superior, é isso que definha junto ao Ney
na frente da praça da Igreja São Cristovão.
Costumo dizer, depois que participei de um
grupo de ajuda para comedores compulsivos, que ao tentarmos conduzirmo-nos à
uma exigido “renascimento espiritual” para nos livrarmos da compulsão, que Deus
se revela muito ironicamente em nossas vidas, nos fatos cotidianos. Isso
implica aquelas sincronia estudadas por Carl Jung quando do processo
psicológico de descoberta e busca pela individuação, algo que deve nos levar à
Completude.
Eu vejo que todo o “Caso Ney” demonstra um pouco disso em nossas vidas aqui no bairro,
um processo amplo, uma chance de autoconhecimento, o qual em comunidade não
levamos à cabo por estarmos preocupados demais com as “coisas de nossa vida pessoal”.
O documentário “Pedras, Plantas e outros Caminhos” se centra na explanação do
método de Acompanhamento Terapêutico e usa o exemplo do Ney como modo de
exemplificar o trabalho que é feito, mas ele fala, pelo menos para mim que me
vejo como parte desta história, da situação não só do Ney, mas de todos nós que
estamos envolvido nesta história, e por isso me sinto também em processo de
acompanhamento pelos doutores, e vir aqui assim refletir e contribuir.
O método é algo simples, como mesmo
exemplifica as palavras finais do vídeo, mas ali estamos lidando com a própria
condição humana que carece de ajuda também, e esse é o objetivo final de
qualquer iniciativa de ajuda pessoal à um indivíduo.
Para além do documentário e do tratamento,
falo do ser humano em si, não um ator de um filme, mas do autor de sua própria
vida, falo do ser humano, de cada um de nós. Grandes desafios e exigências são
propostos a nós, coisas que devemos realizar e cumprir, não tanto para com o
mundo que não perdoa e pune a brincadeira com o perigo, mas para com nós
mesmos, com nossa vida e a forma como escolhemos definir o momento seguinte,
nós que podemos quase tudo, nós que temos um potencial existencial tão grande
que um vazio do mesmo tamanho se aloja em nós, no velho jogo da consciência tal
qual como a herdamos ao nascer nos dias de hoje, dentro da qual volve o
consciente e o inconsciente, urgindo por completude, sempre, em todos os casos.
Rogo para os que me lerem, principalmente os
vizinhos e amigos aqui das imediações, onde esse drama se desenrola, que
tendemos a nos abrir, a sermos uma rocha firme onde se ancore não só pessoas como
o Ney, que andam por aí nas ruas, mas uns com os outros, pois cada um de nós
leva dentro de si a dimensão vazia e faltosa que por fim sobrepujou a alma do
Ney e que todos nós incorremos em potencial de cairmos assim também.
Os perigos da queda por causa da indiferença
podem atingir qualquer um, vem fazendo estragos em cada casa em qualquer
bairro, mal e mal vamos nos dando conta disso. Não falo de um mutirão para
ajudar o Ney, ele não é um problema, muito mais ele mesmo é a porta aberta para
nossa salvação, pois como na psique, âncora e rocha são dois lados de uma coisa
só.
Não sou inocente em pensar em uma coisa
dessa como a tábua de salvação de nossa sociedade inteira, mas pode crer em
mim, a coisa passa por aí. Também não me passa pela cabeça em realizar sucessos
comunitários assim, mas em potência eles são possíveis, então por que não
começar a contrapô-los a aquele vazio?
Se o objetivo da existência humana, como
dizem os gnósticos, é libertar as centelhas do espírito da materialidade, então
um dia, cedo ou tarde, teremos que encarar desafios tais, pois nada será
deixado para traz, e quanto mais demorarmos a começar a fazer o que
autenticamente deve ser feito, mais demoraremos em permanecer aqui adormecidos,
sempre acordando tarde dos nossos pesadelos para uma realidade mais terrível
ainda. Devemos nós também parar de brincar! Ou a própria vida nos fará parar,
como diz Philip K. Dick no final daquele livro: “Fomos obrigados a parar por coisas pavorosas!” (Dick, p.306).
E é pavorosa esta situação de vida de um de nós, ali na praça… mas a beleza
está lá também, na atitude corajosa de uma terapeuta e todo seu grupo.
As plantas jazem imóveis, como árvores e
construções, elas podem fazer a cabeça, assim como as pedras que calçam o chão
aceitam a chuva mansa ou trincam na mente quando sorvidas, mas os caminhos, os
caminhos são diversos, e são eles que podemos escolher, os caminhos denotam que
ainda temos liberdade.
Plantas e pedras são dadas, compradas e
desejadas furiosamente, mas os outros caminhos dependem de nós escolhermos
trilhá-los. Qual escolheremos?
-Citações:
Burroughs, William S. ALMOÇO
NU. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
Dick, Philip K. O
HOMEM DUPLO. Rio de Janeiro: Rocco,
2007.
Leão, Emmanuel Carneiro. APRENDENDO
A PENSAR, Vol. I. Petrópolis: Vozes,
1977.
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