“Não quero que ninguém
ignore meus gritos de dor, e
quero que eles sejam ouvidos”,
“eu represento minha vida...”
Antonin Artaud
Antonin Artaud nasceu na França em 1896. Foi poeta, pintor, escritor, ator e dramaturgo. Seu percurso marcou de modo decisivo áreas tão abrangentes como a literatura, o teatro, a pintura, a filosofia, a medicina e a antropologia.
“Je joue ma viel”(1), declarava Antonin Artaud, e não era uma metáfora. Sua vida é tão ligada à sua obra que poderíamos quase dizer que ele escreveu com a própria vida.
O sofrimento físico e mental de que padece e que exprime em sua correspondência com Jacques Rivière em 1923, o leva a fazer uso do ópio sob prescrição médica desde os quinze anos de idade. A droga o alivia, mas o obriga a terríveis tratamentos de desintoxicação. Sua vida foi uma eterna procura da cura de sua “pavorosa doença do espírito”. Poesia, escritura, pintura, desenho, viagens e esoterismo são formas diversas de uma mesma busca. Nesta busca, o teatro e, em particular, a profissão de ator, ocupa um espaço privilegiado. A cena é o lugar eleito para a cura da dor e da impotência intelectual e criativa decorrente dela; o lugar para recuperar uma nova identidade, não-dividida, mediante uma “síntese superior do físico e do espírito”. Ser ator é a primeira vocação de Artaud; o teatro se apresenta do início ao fim como espaço terapêutico, a cena é “a possibilidade de nascer outro”, de regenerar o ser.
Esta consciência o leva a coincidir sempre sua busca pessoal com a busca de um teatro orgânico, eficaz, necessário, que possibilite ao homem se reencontrar, ou mesmo renascer. Este é o sentido da relação fortíssima, já apontado nos anos trinta no “Teatro e seu Duplo”, entre teatro e vida.
Um teatro eficaz é aquele capaz de refazer a vida, o que não seria possível sem refazer profundamente a cultura no Ocidente. Toda a obra de Artaud foi guiada pelo desejo incessante de reencontrar um ponto de utilização mágica das coisas, recusando uma consciência estética fundada em simulacros, aparências face à realidade empírica das coisas. Ele coloca a questão da linguagem e da manipulação de signos em termos de forças mágicas e da relação mantida, através deles, com o cosmos e com o divino. Para Artaud, o Ocidente europeu é doente porque separado, pois perdeu sua ligação com o divino, com a consciência cósmica.
As Cartas de Rodez
Em 1937, Artaud recebe um bastão mágico proveniente de um feiticeiro da Savóia, que ele acreditava ser o bastão de São Patrick, patrono dos Irlandeses. É para a Irlanda que ele parte, afim de devolvê-lo ao seu lugar de origem e de encontrar traços da cultura celta. Vivendo em condições precárias, em um país onde ele mal domina o idioma, Artaud vive pregando nas ruas com seu bastão. Acusado de ser um agitador e de vagabundagem, é preso e enviado, num barco, pela polícia de volta para a França. Um incidente ocorrido durante a viagem fez com que ele fosse, a partir de 1937, internado como louco em estabelecimentos psiquiátricos.
Ao sofrimento do afastamento, às brutalidades de uma vida comunitária
imposta, aos odores da promiscuidade, e às privações da vida em um manicômio, adicionou-se com a Ocupação alemã em maio de 1940, as carências alimentares.
Assim, em Ville-Évrard, além de sua dignidade e de sua liberdade, Artaud começou a ser privado de seu corpo. Subnutrido, ele se torna um esqueleto, uma sombra dolorosa que tenta manter a vida. Suas cartas, as poucas que se conhece, são longas reivindicações de comida.
"E se ainda estou vivo, Euphrasie, é por ter uma constituição anormalmente
resistente e também por um perpétuo milagre de Deus
mas, na realidade, sou só um cadáver vivo e que se vê
sobreviver e vivo aqui com angústias de morte."
(Carta do 23 de março 1942 à Mme. Artaud)
Artaud ficará esquecido até 1943, quando seus amigos se moverão para salvá-lo. A pedido do poeta Robert Desnos, ele é transferido a Rodez pelo Dr. Ferdière, médico-responsável deste manicômio. Ligado ao movimento surrealista, o médico conhecia Artaud e era um admirador de seu trabalho. Desde sua chegada em Rodez, Artaud inicia uma intensa correspondência com seus amigos, mas também com o médico. Por essas cartas percebemos uma relação ambígua entre os dois: livrando Artaud dos manicômios onde esteve internado em condições extremamente precárias e fazendo com que fosse transferido a Rodez, o médico salva sua vida e, como reconhece o gênio do poeta, o incentiva a retomar sua atividade literária. Ao mesmo tempo, julgando a poesia de seu paciente muito delirante, ele o submetia a
violentos tratamentos de eletrochoque, prejudicando seu corpo e sua memória.
Apesar da relação de amizade que se estabeleceu entre os dois, o Dr. Ferdière mantinha Artaud privado de sua liberdade e de sua dignidade, obrigando um homem que possuía todos os meios de sua maturidade para trabalhar e se manter, a viver sob a tutela de médicos em um regime de promiscuidade, com pacientes que nada tinham em comum com ele. As cartas são para Artaud um recurso para não perder sua lucidez e testemunhos de um homem em terrível estado de sofrimento e de solidão.
“Vejo na sua proposta de me trazer aqui e de cuidar diretamente de mim o desejo de fazer justiça a um homem internado sem razão. Mas tem uma coisa que é inadmissível na minha situação aqui. Já faz quinze dias que pedi ao Dr. Latrimolière que me deixasse tomar banho todos os dias para me manter limpo. Pedi-lhe também que evitasse me incluir no banho coletivo pois a aproximação de todos os corpos nus e o odor dos gazes mefíticos que alguns doentes exalam ofendem minha castidade, e o que me responderam é que não havia água quente. Pedi ainda que me fizessem a barba pelo menos a cada dois dias e o barbeiro me disse que não tinha tempo. E faz dois meses que o senhor prometeu me mandar uma escova de dentes e até agora não me mandou. O senhor bem pode notar que estou sendo maltratado, e poderá notar que também me trata muito mal, e no fim é a mim que o senhor censura dizendo que não me cuido bem. Suas reprovações me feriram o coração, são uma afronta que preferia não ter ouvido da boca de um amigo. Sempre me preocupei com a higiene de meu corpo e apesar de meu enorme cansaço vou procurar todos os instrumentos de que preciso além de uma escova de dentes. Mas será que o senhor não notou que quase não tenho mais dentes, e que dos trinta e três que tinha só sobraram oito. Parece que o senhor já se esqueceu de como os perdi. É cruel, Dr. Ferdière, censurar um homem ferido e acidentado por maus tratos de não escovar os dentes ao saber que este mesmo homem perdeu os dentes por desgraça.” (Montagem de cartas escritas ao Dr. Ferdière em 12 de fevereiro e 18 de maio de 1943.)
Artaud chega em Rodez em janeiro de 1943. Pouco a pouco ele se refaz, recupera seu peso, seu corpo e também sua mente. Em junho estimam que já está restabelecido o bastante para resistir à brutalidade da sismoterapia, e ele é submetido a uma série de eletrochoques.
O eletrochoque, tal como era praticado nessa época, é uma extraordinária barbárie. De uma crise de epilepsia provocada, o doente acorda abobalhado após um coma que dura longos minutos. O eletrochoque abala o pensamento, tornando-o confuso, faz o paciente mergulhar “neste estertor por onde se deixa a vida” e de onde ele volta com a lembrança atroz de ter sido esvaziado de seu eu.
Já na segunda sessão, o corpo de Antonin Artaud não suporta a violência das convulsões e ele sai com fortes dores na coluna vertebral. Assim mesmo, os médicos persistem. Depois do terceiro eletrochoque, elas se tornam insuportáveis, a nona vértebra dorsal é fraturada e o médico deve abandonar este tratamento que causou tantas desordens: será necessário dois meses de leito e de cuidados apropriados antes do corpo poder ficar de pé. No final de outubro do mesmo ano, seu sistema ósseo é considerado
bastante sólido para recomeçar o tratamento. Ele é submetido ainda 12 vezes ao eletrochoque e no ano seguinte três outras séries de 12 são impostas. A cada vez ele se revolta, protesta, suplica e fala, com uma lucidez extraordinária, das razões que ele tem para condenar esta prática:
“O eletrochoque me desespera, tira minha memória
entorpece meu pensamento e meu coração, transforma me
num ausente que se percebe ausente e se vê durante
semanas perdido em busca de seu ser como um morto ao
lado de um vivo. Na última série eu fiquei durante todo o
mês de agosto e setembro absolutamente impossibilitado
de trabalhar, de pensar e de me sentir ser. Peço que me
poupe de uma nova dor, isto me fará repousar, Dr.
Ferdière, e preciso muito de um repouso”
(Montagem de cartas escritas ao Dr. Latrimolière -6 janeiro de 1945-
e ao Dr. Ferdière -24 de outubro de 1943)
No entanto a medicina, esta medicina “que mente a cada vez que ela apresenta um doente curado pelas introspecções elétricas de seus métodos”, continua a pretender curá-lo atravessando seu corpo com descargas elétricas, jogando seu ser no abismo em 51 comas durante os três anos passados em Rodez. Mas graças a que recursos este homem cujo corpo e mente sofreu tal violência conseguiu não se aniquilar?
O Teatro da Cura Cruel
Em Rodez, quando ele sente a possibilidade de voltar para a vida exterior, a idéia do teatro reaparece. A produção literária de Artaud neste período é marcada pela forma epistolar, reveladora de seu desejo de “dramatizar a escrita”, de escrever sempre para alguém, para um leitor-espectador.
Além de recomeçar a escrever e desenhar, ele se dedica a uma intensa e quotidiana prática vocal, exercitando sua respiração e seu corpo, praticando cantos e giros conjuratórios que eram também um meio para lutar contra os feitiços maléficos que o cercavam.
Este trabalho, ele o repetiu quotidianamente depois de seu retorno a Paris. A energia que ele produzia, as forças que emanavam de seu corpo enfraquecido, as incríveis variações de altura que obtinha de sua voz, a intensidade e a duração dos gritos aconteciam como um fenômeno de operação mágica. Este era o Teatro da Cura Cruel, um teatro que não precisa de sala, onde o lugar é o corpo do homem proferindo sua vida. Esta prática foi decisiva para a volta de Antonin Artaud à vida e à poesia.
Mas estes cantos e giros eram censurados pelo médico-chefe do hospital psiquiátrico. Era desconhecer grosseiramente a teoria do grito e do sopro, do corpo do homem como lugar primordial do ato teatral que ele já tinha formulado nos anos trinta com o atletismo afetivo e o Théâtre de Séraphin.
Ele faz questão de deixar claro que esta prática é uma lúcida determinação, ligada ao ato de criação, e que não tem nada a ver com uma demonstração de inconsciência. Ele sempre protestava quando seus cantos escandidos eram usados como provas de sua perturbação mental. Eram cantos que acompanham um desenho ou um poema e que ele transpunha como suporte de um signo escrito ou desenhado.
“O senhor esquece que eu também fui encenador e que
todas as peças que fiz eram baseadas numa utilização
particular da salmodia e da encantação. Isto é doença
mental?”
Artaud resistiu em Rodez pela escrita e pelo trabalho que ele impunha a seu corpo e à sua voz, trabalho este que é uma outra forma de escritura. O homem privado de sua liberdade mais elementar foi também privado de seu próprio corpo. Este mesmo corpo cujo funcionamento anárquico o fez sofrer “os estados de dor errante e de angústia”. Mas o terrível estado de reclusão psiquiátrica constituiu para Artaud uma extraordinária experiência cognitiva. Quando voltou a Paris em 1946, depois de passados 9 anos em manicômios, ele se denomina Artaud, o Mômo, como Artaud, o Louco, o Bufão. Depois de ter sido tanto tempo considerado louco, agora ele sentia prazer em se fazer de louco para dizer certas verdades. Uma destas verdades essenciais diz respeito ao nosso corpo. O corpo atual, desconectado da origem, é o resultado de uma manipulação perpétua e perversa em conseqüência da qual “sua anatomia, que deixou de corresponder à sua natureza”, deve ser refeita. No final de sua vida e de seu percurso artístico, Artaud concebe o Teatro da Crueldade como um grandioso projeto ético-político de insurreição física: trata-se de transformar a cena para que o homem e não somente o ator possa refazer sua anatomia, possa reconstruir um “corpo sem órgãos”. Este refazer baseia-se na idéia da decomposição e recomposição do corpo e visa essencialmente a desarticulação dos automatismos que condicionam e bloqueiam o indivíduo e o impedem de agir realmente, de modo consciente e voluntário, em cena ou na vida. Depois de Rodez, o Teatro da Crueldade é o teatro de um violento refazer do corpo.
(1) “Eu represento minha vida”. – O verbo jouer em francês tem um sentido muito amplo. Significa atuar, representar, interpretar, mas também jogar, brincar, arriscar. No teatro, o ator é aquele que ‘joue’, a tradução freqüentemente encontrada em português é
interpreta, mas, no caso de Artaud, o correto seria uma palavra que reunisse o sentido de
atuar e arriscar.
*Ana Teixeira é encenadora e professora de interpretação teatral, diretora do espetáculo Cartas de Rodez (1998), com texto de Antonin Artaud, que recebeu o prêmio Shell de melhor ator e melhor direção e o prêmio Mambembe de melhor espetáculo.
-Transmissão de Antonin Artaud direto do limbo:
“...
Querem saber o que é mesmo a crueldade? É assim?
Não... Eu não sei!
A Crueldade é extirpar pelo sangue e até o fim Deus!
Deus o acaso bestial da animalidade inconsciente do homem em todo lugar que o encontre.
E o que faz Sr. Artaud?
O homem quando não controlado é um animal erótico!
Ele tem um estremecimento, um estremecimento inspirado, uma espécie de pulsação produtora de monstros sem fim que são as formas que os antigos povos da terra atribuíam universalmente à Deus. Isso constituía o que chamamos de espírito!
...”
-Poema de Artaud:
"Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta que eu o diga
Como só eu o sei dizer
e imediatamente
hão de ver meu corpo
atual,
voar em pedaços
e se juntar
sob dez mil aspectos
diversos.
Um novo corpo
no qual nunca mais
poderão esquecer.
Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe,
e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!
Estou sempre morto.
Mas um vivo morto,
Um morto vivo.
Sou um morto
Sempre vivo.
A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida.
Eu represento totalmente a minha vida.
Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meu
espírito.
Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.
Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria.