30 de ago. de 2019

...fim de Outono

Hoje a rua amanheceu sem folhas,
não rolavam mais
no turbilhão de Agosto...
Hoje a rua despediu os sonhos
de coisas caídas
que vagam à esmo...

Pra onde vão as folhas
pra onde vai a poeira
pra onde foi o vento
& o alento do Outono?

Hoje... é o dono das lembranças
marcadas agora desde sempre
no nunca-mais-será
junto a tudo que se foi...
Hoje... tudo sempre vai
para o eterno 'hoje'... só por hoje...
Amanhã & ontem
pertencem aos sonhos
que aconteceram & acontecerão...




28 de ago. de 2019

Prosa Vultur: Mortessência

Naquele tempo descobriram algo significante sobre a morte, que ela não era tão fácil de acontecer, pois em cada ser humano acomete três mortes, a do corpo, a da alma e a do espírito...
Logo passou-se a se aplicar a morte transcendente, clínicas se especializaram em conduzir uma morte humana para o corpo e na seqüência uma morte fina para a alma.
O que acontecia era primeiro se matar a alma e depois o corpo.
Já a morte do espírito era mais difícil, aquela centelha fugia ao processo, e as clínicas de morte humana se encarregavam de evitar sua volta ao ciclo de encarnação, forçando o espírito a ir de encontro com seu único fim possível, a consumação no nada além, a cessação de suas volições, aquilo que os budistas chamam de Nirvana, assim deixando de ser.
O processo nas clínicas se iniciava quando então um indivíduo decidia deixar de viver ou era imputado pena social de exclusão, por algum desvio de conduta ou sua não necessidade do circuito social em que nascera. Dessa forma ou da outra, o indivíduo era internado na clínica, para receber então o processo duo-trino de des-existência.
Primeiro erradicavam sua alma. Isso consistia em aplicar uma droga que fazia com que o indivíduo desvanecesse e nesse estado imputavam em seu cérebro correntes elétricas com programas de desestabilização somática-psíquica, fazendo cessar a atividade em certas partes do cérebro e do sistema nervoso, interrompendo o fluxo dos sentidos.
Depois dessa fase o corpo ficava inerte, muito parecido com os zumbis retratados na cultura do cinema. O corpo podia ficar nesse estado indefinidamente, se decompondo, porém a humanização consistia em erradicar o corpo, geralmente usando de morte mecânicas como corte do fluxo sangüíneo ou destruição do órgão cerebral.
O que se dava era que antes da iniciação desse processo de morte, o indivíduo passava por um treinamento para proceder com a "morte" de seu espírito, a dissolução da centelha. O processo todo começava no momento de erradicação da alma, e terminava a cerca de 40 dias depois com a eliminação ou descarte do corpo. Nesse período ocorria o bardo de cada um, que de uma forma ou de outra não tinha como se auferir o sucesso da passagem do espírito a não ser por processo religiosos-espirituais, como consultas mediúnicas.
Porém a ciência avançava e já se usava um capacitor eletrônico que reivindicava medir a presença ou descolagem do espírito do plano material e astral, que estava cada vez ganhando mais notoriedade e sendo tido como eficaz para indicar o sucesso da nulização do espírito.
Tudo que ele fazia era medir no corpo a profundidade da tristeza que o corpo imputava, notada nas confluências orgânicas das secreções e glândulas. Um indivíduo cujo espírito alcançou o nada não produzia mais atividade no Timo, que no ser humano comum "vivo" já era pouca, cessava então. Era isso que se media com um aparelho refinadíssimo, o fim da capacidade de ser feliz!
Assim se executavam as três mortes do ser humano, e ele estaria livre do mundo, da roda da vida, da possibilidade de reencarnar ou da ressurreição. Admitia-se também que tal indivíduo não alcançara nenhum paraíso ou nem perecia em qualquer inferno, apenas alcançaria o nada no fim de tudo.



25 de ago. de 2019

Teu corpo lar


Teu corpo
      lar
        labirinto críptico
Onde a fera caminha
   nas veias
      marés sanguíneas
Ele é peixe-boi
   touro, behemoth...

Teu copular
   labirinto ceia
Altar de sacrifício
   da fera morta
Repartida em migalhas com pão
   para eu te encontrar...

Teu corpo lar
   labirinto teia
Onde as feras amansam
   presas
    nas curvas
      nas costas, imensidões
Exala aroma de aranha
   perfura, tece, prova...



23 de ago. de 2019

O problema que somos

Isto me veio com água da chuva:
'A existência é um problema o qual devemos resolver.'
Não existe nenhuma situação na vida, seja boa ou ruim, que não fale do "problema fundamental" para o qual devemos dar uma resposta.
Tudo que acontece, cada coisa, cada pensamento, cada palavra, cada momento, é um lance no jogo de resolvermos o "problema" que somos!
O eterno retorno das mesmas situações que achamos ter deixado para trás é uma prova constante disso na vida de cada um.
Todo o Bem e todo Mal, só existe porque existimos, e toda resposta ou transformação do Mal e do Bem é um esforço, cego ou consciente, para fazer com que cessem.
Se há mais Mal do que Bem em nossas vidas e no mundo, isso se deve ao fato de que ignoramos que somos e sempre seremos um "problema esperando solução."

Os gregos (digo os pensadores, mas também o vulgo) chamaram o Bem de 'άγαθόν', ou seja, "o que possuímos" e que tem uma serventia para nós. Nesse sentido a existência é o que temos de valoroso. O Mal chamaram 'τό χαχόν', que ao final se entende como uma contrapartida do Ser, ou do Bem, como uma espécie de volição reflexiva, para se definirem ambos.
De tal feita então que chegamos à questão do "problema que somos".
Nossa existência foi engendrada de forma tal (e não me pergunte por qual força ou mistério), que se desfiam à nossa frente, cotidianamente, a questão que temos que resolver. Essa trama, essa urdidura, é feita de tal forma, que sempre voltamos aos pontos recorrentes de nossa existência, seja pela força do caráter de cada um, seja pela sorte ou azar, seja pelo puro acaso.
Pensando assim, podemos proclamar o Universo, esse "caos/cosmo maquiado", como uma máquina de produzir "somas zero", porque ao final o resultado que apresentaremos, quando o conseguimos, é aquela realização que Jung chamou de "Summum Bonum", que é a Totalização consciente de todos os fatores bons e ruins de uma psique, de uma consciência, de um indivíduo enfim, na forma de auto-conhecimento: A Resposta!

Seria isso o que Nietzsche chamou de "o Grande Meio-Dia"? A saída do círculo do Eterno Retorno? Me parece que sim!
O "Summum Bonum" é a realização do bem maior, a soma de todos os bens, sendo assim, como na relação não-ser/ser, o bem maior comporta em si o mal também, nosso problema fundamental e a resposta à ele. O interessante nessa equação é que nós na verdade não sabemos qual fator é o "bem" e qual é o "mal", e chamamos assim (bem e mal), por degeneração, principalmente, cristã, como identificou Jung, o qual sugeriu que não conseguíamos solucionar o problema por nós apegarmos doentiamente à luz, havendo que ponderar e conhecer também as trevas com a mesma intensidade.

O "problema que somos" se torna assim a "resposta que damos" ao mundo, ao rol de existências, que somadas todas, haverá uma perfeição do vir-a-ser.

22 de ago. de 2019

Pai

Então já é
   o maior tempo
      que fico sem te ver...
& cada dia será maior
   essa lacuna...
O tempo entretanto
   não serve para medir
      incertas distâncias
Enquanto eu tiver na memória
   a vivência da recordação...
& apesar da brutal saudade
   sinto atrás de um delicado véu
      a presença do seu amor...
& por isso mesmo,
   por essa força carinhosa,
      estás aqui!

16 de ago. de 2019

O Véu do Sumo

Minha pele
de encontro a você
bebe o sumo de sal
dos poros o seu melhor...

Meus ossos cismam
em tremores sísmicos
insurgentes em te abraçar
arrastados ao seu submundo...

Minha boca cessa
de sonhar poeresias
& tomba maremotos
sobre teus seios...

Essas mãos
feridas de tempoestarem longe
temperam carícias
que tecem calmarias na tua face...

& meus olhos cegos
pela tua chamaluz
sobrevêem as sombras
da noite dentro de você...

Pois o corpo
mesmo sonoro,
   Chora silêncios
   além das digestões
       & goza no nada
       de toda consumação!


6 de ago. de 2019

Inscriptos

Tenho andado
....... ... .. escrevendo
α€ν£α¥τ#ε¡α‰μ\0 coisas abruptas...
Talhadas na pedra
na cana, nos bits
no ar;
Tenho inscrito
...... ... .... criptas no exterior
ΔΑΔΥΘΥΔΑΔ da nudez que é ser lido...

Mando minhas palavras
buscarem alguém,
Mando os verbos
morderem infinitivos,
& arremesso as flexões
à puta que as pariu.

Tenho andado
...... .. ..... escrevendo
                   flertes com o não-dizer...
pelo silêncio
pela imagem
pelo re-velar;
Tenho escrito
..... ........ .... ficções pictóricas
                      buscando incomunicar

Ensinei as letras dançarem
em palavras que copulam entre si
até desaparecerem
no nada no fim de tudo!

1 de ago. de 2019

Estranhamento

Sonho perigosamente
próximo da morte
na borda do esquecimento...
...os dias vem refinados
com poeira ancestral
da cor de fígado...
...aqueço as horas
porque a água
está misteriosamente fria...
...& espero sonâmbulo
o dia chegar
para enfim dormir...
...pássaros coordenam aurora
com luz de néon
que se apaga...
...& eu tento despertar da insônia
enquanto tenho chance
de manter a saudade...
...do que foi
do que é
& o que será...
...tudo diferente
& estranhamente igual
na face da terra...