pela fresta aberta de todas as nefralgias
Ele torna tudo tão real
na roda que gira e atropela
como toda essa orgia de dor
na carne intumescida de uma certa indignação
de um certo refugo e assombro
quando na dor
toda delicadeza acaba
e o sentido da beleza e da vida
se perde no susto constante
do doer e doer e doer...
Deus entra no mundo
pelo dente infeccionado
pelo rasgo do anzol
pelo corte do vidro
pelo câncer em remissão
pelo furo do espinho
pela fratura exposta
pela angústia do suicida
Deus entra no mundo
na humilhação dos corpos
na fraqueza da carne
na vergonha das formas
na insatisfação das fomes
na ofensa das palavras
na degradação das paixões
na opressiva vigilância dos pudores
Deus entra no mundo
desfazendo todos os nossos sonhos de tranquilidade
matando tudo que um dia se curou e superou
apequenando todo prazer mendigado no escuro
preocupando toda felicidade com o instante seguinte
findando toda abundância de juventude ou velhice
degradando toda saúde e força em febre que ferve
tornando tudo mais real e nu e cru e frio e quente
Deus entra no mundo
nas dores dos partos
nas dores dos prepúcios
nas dores dos virgens
nas dores dos úteros
nas dores de estômagos
nas dores dos cus
nas dores das almas
Deus entra no mundo
na dor incompreensível para os animais
na dor incompreensível para as árvores
na dor incompreensível para as estrelas
na dor incompreensível de todos os inocentes
na dor incompreensível da desproporcionalidade
na dor incompreensível para o torturado
na dor incompreensível para o torturador
Deus entra no mundo
nos estupros coletivos
nos atos de ódio racial
nas ações das tropas de choque
nas fileiras de tanques de guerra
nas praças sitiadas por soldados
nas câmaras de gás e campos de refugiados
nos sacrifícios de seres vivos
Deus entra no mundo
como o coma induzido
como o incêndio criminoso
como a cirurgia invasiva
como a defenestração progenitora
como a garganta em grito rouco
como a emasculação religiosa
como o olho do furacão
Deus entra no mundo pela dor,
Deus vêm por aí:
como matador
como anestésico
como esquecimento
como água
como alívio
como desforra
como fôlego
como consolo
Deus vêm por aí
como choro que cansa e finalmente faz dormir
como desespero convertido em coragem repentina
como desistência expressa em pura oração
como desapego contido na entrega final
como perdão latente à todo ato imperdoável
como ar que arrebata o afogado
como resignação feita paciência ampla
como sabedoria que ensina que tudo há de passar
tudo há de, enfim, acabar! Findar!
Em toda dor há de dizer:
que isso passará também!
Tudo há de passar!
E passará!
Paz que há de nos sarar!
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