i
Hoje de manhã vi um gato amarelo,
estava encolhido
em posição de esfinge,
sua face felina era grave
como se uma grande dor o consumisse,
como se ele estivesse entorpecido
pelos eflúvios desse sofrimento;
Ali, na rua, à luz do dia,
imóvel & exposto aos olhos indiferentes de
todos
ele morria em sua pequenez
de uma forma que à mim pareceu conter algo de
dignidade simples,
um desencarnar cheio de incompreensão & dor,
porque os animais não entendem
porque sofrer
porque morrer;
De sua pequena boca
escorria um fio grosso de sangue
manchando o asfalto que com nada se incomoda,
somado à frieza das máquinas
que tudo trucidam sobre o betume duro,
o pequeno gato
em sua insignificância cheia de profundo existir
abandonava este mundo
ganhando todo sossego
que a clara luz da passagem
pode doar no fim de qualquer existência;
ii
Mais tarde
desenterrei pirâmides em um ferro velho
como se fosse o sarcófago astral do gato
amarelo,
um portal transcendental para a alma felina,
para que no submundo
galgasse sorte melhor
do que morrer sem sentido,
a pirâmide aponta para isso
caminhos humanos devendo se tomar,
Será que entender o sofrer & o morrer é
destino melhor?
iii
Quando o dia já era velho,
em um mesmo tipo de sarjeta
onde vi o gato sangrando pela boca,
assisti três crianças
se banhando na vala de um bueiro de estrada,
eram três crianças miseráveis
eram três reis, três faraós, três múmias vivas,
sepulcros ambulantes dessa civilização
banhando-se no rio subterrâneo dos bairros
pobres;
iiii
Esse grande sarcófago que é a cidade
abriga em seu labirinto encantado
a dor & a injustiça,
diante sua sedução urbana
eu sempre fico a me perguntar:
“Quando
deixaremos de amar a cidade?”
Os gatos trucidados
& os meninos explorados
querem saber, em sua morte diária:
“Quando
começaremos a amar as construções de nosso espírito?”
A necrópoles disfarçada
só aumenta o peso de sua lápide
seduzindo & querendo fazer nos orgulhar
da grandeza da cidade,
auto-vias, sarjetas brancas, engarrafamentos,
poluição, lixo sobre lixo...
A necrópoles se esconde em nossa consciência
como um verme nas entranhas do pensamento
& quer se apossar dos campos de nossa
imaginação,
animais esfolados & pessoas miseráveis
colorem o concreto & o vazio de sentimentos
para dar significância ao aglomerado inumano;
v
A chacina & a humilhação diária prossegue,
prosseguirá, infindável,
o sangue dos gatos & os banhos dos meninos
no esgoto
tem seu lugar apropriado,
tudo vai ao ritmo do ocaso,
ao fundo uma música de motores & ventania de
poeira...
Hoje, quando o dia terminar
um gato a menos vai sofrer
& três fantasmas a mais vão seguir
rumo ao destino da necrópoles,
serão todos cadáveres ao ar livre...
“Bem
aventurados sejam os gatos que morrem pela manhã.
É deles o
portal da grande pirâmide
que há de
abrigar as almas nulas
dos que
vivem & partem com felina dignidade,
sem
tomarem parte de mais uma calamidade.”