“Aquele que pode ser ele próprio, não
deveria ser outro”
Paracelso
Conhecer o que se crê não é fé, é gnose.
Os caminhos da alma sempre foram
verdadeiramente tortuosos. Ao longo da história humana, este istmo de
consciência que chamamos alma sempre buscou se compreender, sempre buscou
de uma forma ou de outra lançar um olhar sobre si mesmo, e isto foi o que ficou
conhecido ao longo do tempo como espiritualidade, e quando isto foi deturpado,
manipulado por grupos, conheceu-se o que chamamos de religião, as mais
deslavadas mentiras de todos os tempos e lugares.
Isto porque o conceito de religião sempre
foi pomposamente apresentado às mentes incautas e sedentas de sossego como
“religação”, no caso, à Deus. O velho e surrado “religare” nunca dera liga real, porque a premissa da qual sempre
partiu é falaciosa, ou no mínimo pretensiosamente manipulada com má fé alheia.
Isso se dá porque se realmente tivéssemos
compreensão do que seja Deus ou o Sagrado, veríamos, como um gnóstico sempre
viu, que nunca estivemos “desligados” de Deus, porque nós somos em essência
esse Deus.
O que se dá, e a religião, ou as religiões,
sempre cooperam com isso é uma agnosia, um desconhecer. E desconhecer é totalmente diferente de ‘estar
desligado’.
Somos desconhecedores de nossa verdadeira
natureza, ou porque não tivemos acesso à essa informação ou porque fomos
deliberadamente enganados permanentemente, como cegos sendo guiados por cegos.
Só que nessa equação, alguns cegos aproveitaram mais que outros da condição da
maioria.
O caráter da Gnose, e que a fez ser perseguida
historicamente, é que ela não aceita isso. Um gnóstico não aceita o
desconhecimento, nem espiritual, nem sequer político, social, científico, ou de
qualquer maneira. O gnóstico sempre busca conhecer!
Essa qualidade essencial da gnose é a que a
faz ser naturalmente rebelde para com o mundo, seja o mundo entendido como
sociedade, seja o mundo entendido como cosmo, universo. Isso se dá não porque a
pessoa que se reconhece gnóstica seja um revoltado, não! Totalmente ao
contrária. É assim porque a índole do Espírito é justamente indomável, ele não
se submete à nada que possamos perceber no horizonte do mundo, pelo menos
quando está verdadeiramente desperto, no controle da mente, ou melhor, do
coração humano.
Se distende-se nesse ponto entre mente e
coração justamente para se precisar o ponto de vínculação com a realidade na
qual o gnóstico atua. E essa atuação é bem clara para o gnóstico, pois há o
corpo material, algo conceituado como hilético na terminologia da Gnose, e há a
alma, dita psique.
Assim existem, de nascimento, as pessoas
hiléticas, materialistas; existem as pessoas psíquicas, ou seja, mentais,
intelectivas. Mas existem também as pessoas pneumáticas, ou seja, as
espiritualizadas por natureza, e essas são as que se descobrem gnósticas, verdadeiramente
gnósticas.
Esses termos, todos gregos, podem apenas
parecer palavras bonitas ou diferentes para se referir à conceitos comuns, mas
expressando assim, por uma linha de intuição, podemos declarar uma verdade
humana que não é facilmente reconhecida, e de tal forma podemos separar
intuitivamente as formas de vida ou existência que convivem dentro daquilo que
chamamos como um todo de Humanidade.
O ser humano pneumático é aquele que ao
longo do tempo, em diversas existências, vem trabalhando sob a orientação
indomável de seu próprio espírito, esse trabalho é o labor pela
individualidade, onde mediam as forças da autenticidade, da criatividade, da
autoconsciência e principalmente da liberação para com a materialidade.
Esse labor é estranho, e só podem o
reconhecer quem passou pela experiência da descoberta de suas verdades
pessoais, uma experiência de intuição que vem conceber uma verdade não da
mente, mas do coração, pois do modo como ela é concebida vai muitas vezes
contra tudo aquilo que o indivíduo aprendeu em sua vida cotidiana comum, em sua
formação cultural, familiar, e até épocal.
Por isso é definida no âmbito gnóstico como
gnosis
kardia, um conhecimento do coração. Dizer isso pode parecer
contraditório ao leitor atento, mas ela revela a qualidade da atuação do
Espírito junto ao ser humano. A fulminante luz da intuição pneumática abrange
corpo e alma, reunidos naquilo que poderíamos entender como Psicológico, uma
palavra precária, devemos admitir, pois trata de uma contradição muitas vezes
não percebida, mas que propõe justamente aquilo ao qual o gnóstico não teme a
se referir quando trata de seu conhecimento, que é o Paradoxo, o extra-ordinário.
Pois só no âmbito do além do que seja
ordinário, além do comum, que o Espírito realmente atua. O comum, o inferior, o
casual é o mundo, ao qual o Espírito não pertence, ele é aqui um estrangeiro.
Tudo que é do mundo, moral, valores,
religiões, técnica, é estranho ao Espírito, e mais, mediante a lente desses
conceitos edificados pela humanidade e que se apossaram dela como seus
senhores, sob o olhar desses paradigmas, o Espírito é o que há de mais bizarro.
Por isso a Gnose se infiltra no mundo pelo
coração e não pela mente, pois de outra forma a mente a processaria e a faria
se tornar não-espiritual, religioso, racional. Poderíamos dizer, com um pouco
de paciência não muito comum aos gnósticos radicais, que ao hilético basta os
instintos serem recompensados, ao psiquíco contenta-se que a mente jogue com
seus artifícios, suas ment/iras, porque tudo isso à eles seja natural.
Mas quando o pneumático desperta, sacudido
vez ou outra por um incômodo que assalta seu pensamento, de que as coisas não
são como nos contaram, que a realidade sobre as coisas que parecem importante
na verdade é bem mais assombrosa do que se faz passar à luz do amortecimento do
corpo e da alma, e então se sente desamparado pelas premissas do corpo e da
alma, e se desassossega, e o desassossego se torna o prumo na relação dele para
com tudo no mundo, o que se chama filosoficamente de estado de angústia, então
a experiência desse conhecimento do coração começa a se insulflar na realidade.
Com o bater do coração dissonante, o tempo
parece correr mais devagar, ou mais depressa, e começa a se revelarem
pensamentos inconcebíveis, pois não se sabem como se pode os conceber por não
terem nenhuma causa visível, e o limite da existência estoura como bolha, e o
nome e o ego que o possui começam a não fazerem sentido e parecerem insignificante diante da linha maior da existência que se apresenta por isso. A
angustia demonstra saudades e ódios ancestrais, e também presenças e amores
injustificáveis, toda uma extensa experiência imersa em um panorama de
penumbra, de mistura de luzes e sombras que começam então a se imporem como
verdade fundamental individuais… Mediante tudo isso então você sabe enfim que
está seguindo o caminho de seu coração, seguindo sua voz pessoal.
Na experiência do gnóstico então começam a surgir no horizonte da existência, como a aurora de um sol negro, algumas
sincronias, a maioria, para os atentos, se dá como a confirmação através de
outros, talvez indivíduos reconhecidos como mais sábios ou experientes, de
coisas que você já tenha pensado antes, talvez tenha escrito como poemas,
ensaios, talvez anotações de sonhos ou experiências cotidianas. Essas coisas
quando vem se parecem como ecos paradoxais que definem conhecimentos mas de uma
forma inversa, primeiro o efeito, depois a causa, coisas assim.
A gnose do coração então vai se formando,
pequenas centelhas aqui e ali, e depois quando se vê o incêndio está formado,
mas se dá um passo, e o pasto seco incendiado já está distante, e o Espírito
está levando seu fogo para outras escarpas, outras partes do sertão,
desfiladeiros, e o espírito extraordinário logo está incendiando desertos,
oceanos, abismo.
Talvez por tanto conduzir o fogo do coração,
o mundo decadente irônico tenha trazido seu fogo também para junto dos corpos dos
seres humanos pneumáticos, e dado à eles experimentar na carne suas fogueiras,
mas isso é parte da guerra que o Espírito trava contra o mundo, infelizmente. A
brutalidade da morte e do castigo é da natureza e da natureza humana,
respectivamente, pois quem já passou pela experiência de ouvir a voz do coração
provavelmente já intuiu sobre a característica selvagem e cega do criador desse
mundo.
O gnóstico reconhece isso, que o mundo é um
belo jardim para as bestas, que nele se deleitam. E que esse jardim, essa selva
enfrenta à sua forma o ataque da alma, uma pulsão de ordenamento promovida pela
razão, e a natureza sempre empurra no nariz da humanidade sua indolência, como
terremotos, tsunamis, epidemias, secas, enchentes, e a alma cega brinca com
isso querendo reverter as intempéries à provações divinas consolando-se com
conceitos de culpa e purgações tão servil como se houvesse mesmo um sentido no
sofrimento para além de sua função de fortalecer não a alma, mas sim a carne.
À essa luta a mente chama civilização e
retrocesso, mas nada disso ao fim engana o Espírito, ele passa ao largo de tudo
isso, poder, dinheiro, convenções; a voz
do coração contou à alma e ao corpo o que tudo isso significa: Nada!
Voltada para um reconhecimento do mundo, em
construir uma sociedade e extrair da natureza o bem estar, o corpo e a alma
estão perdendo tempo. Vivemos em uma prisão construída engenhosamente para
protelar a revelação de nossa verdadeira natureza, que somos deuses, senhores
da matéria e do espírito, e esse universo irá perecer, e nós aqui entretidos
por dores e prazeres nunca iremos nos libertar disso se não prestarmos atenção
à voz do coração. Prolongaremos por agnosia
nosso sofrimento!
Cito um sábio gnóstico atual para melhor
exemplificar isso:
“… os
gnósticos eram conhecedores de um segredo tão fatal e terrível que os
governantes deste mundo - isto é, os poderes, secular e religioso, que sempre
lucraram com os sistemas estabelecidos da sociedade - não podiam permitir-se
ver esse segredo conhecido e, muito menos, tê-lo publicamente proclamado em
seus domínios. De fato, os gnósticos sabiam algo: a vida humana não alcança a
sua realização dentro das estruturas e instituições da sociedade, porque representam, na melhor das hipóteses, apenas obscuras projeções de outra
realidade mais fundamental. Ninguém atinge sua verdadeira natureza individual
sendo o que a sociedade espera nem fazendo o que ela deseja. Família,
sociedade, igreja, ocupação e profissão, lealdade patriótica e política, bem
como regras e normas e éticas, na realidade de modo algum conduzem ao
verdadeiro bem-estar espiritual da alma humana. Ao contrário, constituem, com
maior frequência, as próprias algemas que nos alienam de nosso real destino
espiritual.”*
Temos então todo o aparato necessário para
sermos livres deste mundo, o que devemos nos perguntar primeiro é: queremos
compreender ou queremos acreditar?
Porque dependendo da nossa propensão que
podemos definir nosso curso nesta existência. Entretanto há os que são aptos a
crer, como um dom, e outros porém parecem não conseguir crer em nada. Talvez
sejam esses poucos e raros os únicos gnósticos verdadeiros em atividade no
mundo. A Gnose é conhecer, é compreender!
São poetas, místicos, inconformados,
desafortunados, parias desassossegados em geral que percorrem o mundo com uma
centelha pronta a iluminar o matagal sem trilha da vida e com o fogo acesso
desmascarar a sociedade de sua falsidade inerente, que se revela como nunca
nessa época de final de ano, principalmente no Natal.
Nós, gnósticos repercutimos com a rebeldia
de nosso amor espiritual a máxima de que a razão que usam contra nós é apenas
uma “grande loucura pública”,
enquanto sorvemos a intuição “irracional” de nossos corações.
Consolamentum
Nem o
Batismo da Água e do Sal
Nem o
Batismo do Fogo e do Ar
Abrem o
Plano Quadrimensional,
Como não
têm o poder de salvar.
Como
poderá existir uma Iniciação
Que redima
equívocos cometidos,
Que
conduza o Iniciado à Perfeição
E que
cancele erros de tempos idos?
Tampouco a
castidade e a austereza
Podem franquear
a Porta do Pleroma
E conduzir
ao Sumo Bem e à Beleza.
O Coração!
Só a Voz do Coração
Pode
transmutar o deletério coma
E
realmente promover a Libertação.
* Stephan Hoeller
in “A
Gnose de Jung”, p.45, Cultrix.