22 de dez. de 2014

A Gnose do Coração



   “Aquele que pode ser ele próprio, não deveria ser outro”
Paracelso

   Conhecer o que se crê não é fé, é gnose.
   Os caminhos da alma sempre foram verdadeiramente tortuosos. Ao longo da história humana, este istmo de consciência que chamamos alma sempre buscou se compreender, sempre buscou de uma forma ou de outra lançar um olhar sobre si mesmo, e isto foi o que ficou conhecido ao longo do tempo como espiritualidade, e quando isto foi deturpado, manipulado por grupos, conheceu-se o que chamamos de religião, as mais deslavadas mentiras de todos os tempos e lugares.
   Isto porque o conceito de religião sempre foi pomposamente apresentado às mentes incautas e sedentas de sossego como “religação”, no caso, à Deus. O velho e surrado “religare” nunca dera liga real, porque a premissa da qual sempre partiu é falaciosa, ou no mínimo pretensiosamente manipulada com má fé alheia.
   Isso se dá porque se realmente tivéssemos compreensão do que seja Deus ou o Sagrado, veríamos, como um gnóstico sempre viu, que nunca estivemos “desligados” de Deus, porque nós somos em essência esse Deus.
   O que se dá, e a religião, ou as religiões, sempre cooperam com isso é uma agnosia, um desconhecer. E desconhecer é totalmente diferente de ‘estar desligado’.
   Somos desconhecedores de nossa verdadeira natureza, ou porque não tivemos acesso à essa informação ou porque fomos deliberadamente enganados permanentemente, como cegos sendo guiados por cegos. Só que nessa equação, alguns cegos aproveitaram mais que outros da condição da maioria.
   O caráter da Gnose, e que a fez ser perseguida historicamente, é que ela não aceita isso. Um gnóstico não aceita o desconhecimento, nem espiritual, nem sequer político, social, científico, ou de qualquer maneira. O gnóstico sempre busca conhecer!
   Essa qualidade essencial da gnose é a que a faz ser naturalmente rebelde para com o mundo, seja o mundo entendido como sociedade, seja o mundo entendido como cosmo, universo. Isso se dá não porque a pessoa que se reconhece gnóstica seja um revoltado, não! Totalmente ao contrária. É assim porque a índole do Espírito é justamente indomável, ele não se submete à nada que possamos perceber no horizonte do mundo, pelo menos quando está verdadeiramente desperto, no controle da mente, ou melhor, do coração humano.
   Se distende-se nesse ponto entre mente e coração justamente para se precisar o ponto de vínculação com a realidade na qual o gnóstico atua. E essa atuação é bem clara para o gnóstico, pois há o corpo material, algo conceituado como hilético na terminologia da Gnose, e há a alma, dita psique.
   Assim existem, de nascimento, as pessoas hiléticas, materialistas; existem as pessoas psíquicas, ou seja, mentais, intelectivas. Mas existem também as pessoas pneumáticas, ou seja, as espiritualizadas por natureza, e essas são as que se descobrem gnósticas, verdadeiramente gnósticas.
   Esses termos, todos gregos, podem apenas parecer palavras bonitas ou diferentes para se referir à conceitos comuns, mas expressando assim, por uma linha de intuição, podemos declarar uma verdade humana que não é facilmente reconhecida, e de tal forma podemos separar intuitivamente as formas de vida ou existência que convivem dentro daquilo que chamamos como um todo de Humanidade.
   O ser humano pneumático é aquele que ao longo do tempo, em diversas existências, vem trabalhando sob a orientação indomável de seu próprio espírito, esse trabalho é o labor pela individualidade, onde mediam as forças da autenticidade, da criatividade, da autoconsciência e principalmente da liberação para com a materialidade.
   Esse labor é estranho, e só podem o reconhecer quem passou pela experiência da descoberta de suas verdades pessoais, uma experiência de intuição que vem conceber uma verdade não da mente, mas do coração, pois do modo como ela é concebida vai muitas vezes contra tudo aquilo que o indivíduo aprendeu em sua vida cotidiana comum, em sua formação cultural, familiar, e até épocal.
    Por isso é definida no âmbito gnóstico como gnosis kardia, um conhecimento do coração. Dizer isso pode parecer contraditório ao leitor atento, mas ela revela a qualidade da atuação do Espírito junto ao ser humano. A fulminante luz da intuição pneumática abrange corpo e alma, reunidos naquilo que poderíamos entender como Psicológico, uma palavra precária, devemos admitir, pois trata de uma contradição muitas vezes não percebida, mas que propõe justamente aquilo ao qual o gnóstico não teme a se referir quando trata de seu conhecimento, que é o Paradoxo, o extra-ordinário.
   Pois só no âmbito do além do que seja ordinário, além do comum, que o Espírito realmente atua. O comum, o inferior, o casual é o mundo, ao qual o Espírito não pertence, ele é aqui um estrangeiro.
   Tudo que é do mundo, moral, valores, religiões, técnica, é estranho ao Espírito, e mais, mediante a lente desses conceitos edificados pela humanidade e que se apossaram dela como seus senhores, sob o olhar desses paradigmas, o Espírito é o que há de mais bizarro.
   Por isso a Gnose se infiltra no mundo pelo coração e não pela mente, pois de outra forma a mente a processaria e a faria se tornar não-espiritual, religioso, racional. Poderíamos dizer, com um pouco de paciência não muito comum aos gnósticos radicais, que ao hilético basta os instintos serem recompensados, ao psiquíco contenta-se que a mente jogue com seus artifícios, suas ment/iras, porque tudo isso à eles seja natural.
   Mas quando o pneumático desperta, sacudido vez ou outra por um incômodo que assalta seu pensamento, de que as coisas não são como nos contaram, que a realidade sobre as coisas que parecem importante na verdade é bem mais assombrosa do que se faz passar à luz do amortecimento do corpo e da alma, e então se sente desamparado pelas premissas do corpo e da alma, e se desassossega, e o desassossego se torna o prumo na relação dele para com tudo no mundo, o que se chama filosoficamente de estado de angústia, então a experiência desse conhecimento do coração começa a se insulflar na realidade.
   Com o bater do coração dissonante, o tempo parece correr mais devagar, ou mais depressa, e começa a se revelarem pensamentos inconcebíveis, pois não se sabem como se pode os conceber por não terem nenhuma causa visível, e o limite da existência estoura como bolha, e o nome e o ego que o possui começam a não fazerem sentido e parecerem insignificante diante da linha maior da existência que se apresenta por isso. A angustia demonstra saudades e ódios ancestrais, e também presenças e amores injustificáveis, toda uma extensa experiência imersa em um panorama de penumbra, de mistura de luzes e sombras que começam então a se imporem como verdade fundamental individuais… Mediante tudo isso então você sabe enfim que está seguindo o caminho de seu coração, seguindo sua voz pessoal.
   Na experiência do gnóstico então começam a surgir no horizonte da existência, como a aurora de um sol negro, algumas sincronias, a maioria, para os atentos, se dá como a confirmação através de outros, talvez indivíduos reconhecidos como mais sábios ou experientes, de coisas que você já tenha pensado antes, talvez tenha escrito como poemas, ensaios, talvez anotações de sonhos ou experiências cotidianas. Essas coisas quando vem se parecem como ecos paradoxais que definem conhecimentos mas de uma forma inversa, primeiro o efeito, depois a causa, coisas assim.
   A gnose do coração então vai se formando, pequenas centelhas aqui e ali, e depois quando se vê o incêndio está formado, mas se dá um passo, e o pasto seco incendiado já está distante, e o Espírito está levando seu fogo para outras escarpas, outras partes do sertão, desfiladeiros, e o espírito extraordinário logo está incendiando desertos, oceanos, abismo.
   Talvez por tanto conduzir o fogo do coração, o mundo decadente irônico tenha trazido seu fogo também para junto dos corpos dos seres humanos pneumáticos, e dado à eles experimentar na carne suas fogueiras, mas isso é parte da guerra que o Espírito trava contra o mundo, infelizmente. A brutalidade da morte e do castigo é da natureza e da natureza humana, respectivamente, pois quem já passou pela experiência de ouvir a voz do coração provavelmente já intuiu sobre a característica selvagem e cega do criador desse mundo.
   O gnóstico reconhece isso, que o mundo é um belo jardim para as bestas, que nele se deleitam. E que esse jardim, essa selva enfrenta à sua forma o ataque da alma, uma pulsão de ordenamento promovida pela razão, e a natureza sempre empurra no nariz da humanidade sua indolência, como terremotos, tsunamis, epidemias, secas, enchentes, e a alma cega brinca com isso querendo reverter as intempéries à provações divinas consolando-se com conceitos de culpa e purgações tão servil como se houvesse mesmo um sentido no sofrimento para além de sua função de fortalecer não a alma, mas sim a carne.
   À essa luta a mente chama civilização e retrocesso, mas nada disso ao fim engana o Espírito, ele passa ao largo de tudo isso, poder, dinheiro, convenções;  a voz do coração contou à alma e ao corpo o que tudo isso significa: Nada!
   Voltada para um reconhecimento do mundo, em construir uma sociedade e extrair da natureza o bem estar, o corpo e a alma estão perdendo tempo. Vivemos em uma prisão construída engenhosamente para protelar a revelação de nossa verdadeira natureza, que somos deuses, senhores da matéria e do espírito, e esse universo irá perecer, e nós aqui entretidos por dores e prazeres nunca iremos nos libertar disso se não prestarmos atenção à voz do coração. Prolongaremos por agnosia nosso sofrimento!
   Cito um sábio gnóstico atual para melhor exemplificar isso:
   “… os gnósticos eram conhecedores de um segredo tão fatal e terrível que os governantes deste mundo - isto é, os poderes, secular e religioso, que sempre lucraram com os sistemas estabelecidos da sociedade - não podiam permitir-se ver esse segredo conhecido e, muito menos, tê-lo publicamente proclamado em seus domínios. De fato, os gnósticos sabiam algo: a vida humana não alcança a sua realização dentro das estruturas e instituições da sociedade, porque representam, na melhor das hipóteses, apenas obscuras projeções de outra realidade mais fundamental. Ninguém atinge sua verdadeira natureza individual sendo o que a sociedade espera nem fazendo o que ela deseja. Família, sociedade, igreja, ocupação e profissão, lealdade patriótica e política, bem como regras e normas e éticas, na realidade de modo algum conduzem ao verdadeiro bem-estar espiritual da alma humana. Ao contrário, constituem, com maior frequência, as próprias algemas que nos alienam de nosso real destino espiritual.”*
   Temos então todo o aparato necessário para sermos livres deste mundo, o que devemos nos perguntar primeiro é: queremos compreender ou queremos acreditar? 


    Porque dependendo da nossa propensão que podemos definir nosso curso nesta existência. Entretanto há os que são aptos a crer, como um dom, e outros porém parecem não conseguir crer em nada. Talvez sejam esses poucos e raros os únicos gnósticos verdadeiros em atividade no mundo. A Gnose é conhecer, é compreender!
   São poetas, místicos, inconformados, desafortunados, parias desassossegados em geral que percorrem o mundo com uma centelha pronta a iluminar o matagal sem trilha da vida e com o fogo acesso desmascarar a sociedade de sua falsidade inerente, que se revela como nunca nessa época de final de ano, principalmente no Natal.
   Nós, gnósticos repercutimos com a rebeldia de nosso amor espiritual a máxima de que a razão que usam contra nós é apenas uma “grande loucura pública”, enquanto sorvemos a intuição “irracional” de nossos corações.

Consolamentum



Nem o Batismo da Água e do Sal

Nem o Batismo do Fogo e do Ar

Abrem o Plano Quadrimensional,

Como não têm o poder de salvar.



Como poderá existir uma Iniciação

Que redima equívocos cometidos,

Que conduza o Iniciado à Perfeição

E que cancele erros de tempos idos?



Tampouco a castidade e a austereza

Podem franquear a Porta do Pleroma

E conduzir ao Sumo Bem e à Beleza.



O Coração! Só a Voz do Coração

Pode transmutar o deletério coma

E realmente promover a Libertação.




* Stephan Hoeller in  A Gnose de Jung”, p.45, Cultrix.


***Consummatum est, anno domini MMXIV e.v***

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