“Os
tigres da ira sabem mais
do
que os camelos da cultura”
Blake
- Gnose, Arte & Vida
Quando a mente é deixada livre, sem o controle consciente do pensamento,
sem a influência do pensamento lógico ou especulativo, ela então começa a
trabalhar sem amarras condicionadas e proporciona ao indivíduo um desfile
rápido e contínuo de um material mental diferenciado do comum, pensamentos
puros advindos como ecos visuais e imprevistos vindo do fundo da mente, coisa
que poderíamos chamar justamente de “imprevisão”.
Desse tipo de experiência muitos artistas retiram ideias: músicas,
pinturas, textos. Mas é dessa qualidade de pensamento que também advém a Gnose
espiritual.
Então, as obras artísticas emanadas de quando se cessa todo pensamento
racional apresentam a marca espiritual que define não só a obra, mas também o
artista, como um indivíduo pneumático. E mesmo que muitas vezes artistas façam
uso de substâncias alucinógenas ou enteógenas para alcançar esse objetivo,
mesmo sendo aquela faculdade uma propriedade comum à todas as pessoas, a mente
parece trabalhar em um processo parecido no caso da influência das substâncias
ou sem o uso delas, a mente se desprende dos parâmetros racionais.
A Gnose, por sua vez, como um elemento espiritual e religioso é um fator
antigo no seio da humanidade e sua afinidade com a expressão artística é notada
por estudiosos contemporâneos do fenômeno. Talvez pela intensa vontade de manifestação
de Autenticidade individual, a visão gnóstica de mundo sempre converge para a
manifestação artística, uma espécie de volição perene do espírito humano
procurando se expressar materialmente.
Essa faculdade então não advém da mente trabalhando em dieta racional, e
não seria exagerado dizer que as grandes obras artísticas da humanidade foram
geradas a partir desse domínio
irracional da mente humana.
Argumentar a favor disso não prescindiria de um ucasse a respeito do que
seja a Obra de Arte em si, e reivindicaria também a formalização dos gostos
estéticos de quem argumenta. Mas para além de toda conceitualização a favor da
essência irracional da arte, podemos concordar, a partir do entendimento comum
da influência intuitiva, inspiratória e randômica, que sempre pauta a criação
artística.
Tais fatores são observados também no desenvolvimento dos elementos da
Natureza, o que facilita ver essa ‘essência irracional’ dirigida por uma função
de objetividade, necessidade e vivificadora no mundo, nas coisas, haja ver que
o conceito de Vida é um dos mais difíceis de se definir.
Levando-se em conta isso, eu poderia dizer que uma obra como “Almoço Nu” de Burroughs, ou um quadro
de Dali são tão necessárias à vida como uma árvore ou uma água-viva no mar.
Essas coisas são de alguma forma necessárias à realidade pois tem com ela uma
relação de vir-a-ser.
Pode-se nesse entremeio querer discutir o que define algo como uma obra
de arte, e que eu em meu argumento defino tudo como obra de arte então, mas
veja, o ponto aqui está focado não na obra em si, no objeto, mas no ato de
autenticidade, de originalidade que manifestou essas coisas no mundo. E o fundo
comum a isso tudo é essa tal ‘irracionalidade’ que paira como substrato
imanente sobre todas essas coisas.
- Caos, Ordem & Entropia
Humanamente definimos a Natureza, os animais, as plantas, os minerais
como seres irracionais, e se define o ser humano como racional por fazer uso de
faculdades mentais lógicas.
A Natureza, digamos, o Universo todo, se estabeleceu, se desenvolveu
então, não obstante esse fundo irracional que a permeia (algo que remete a
visão da criação pelo Demiurgo), mesmo que, das partículas subatômicas aos
sistemas biológicos complexos, o ser humano tenha entrevisto leis rígidas
atuando, essas leis não diferem dos instintos animalescos que fazem, p.ex., um
tubarão ser o que é, uma besta irracional.
E até para além, mesmo que o Caos seja um mito, depois da ciência nos
apresentar a formação fractal das coisas, mesmo essa ordem natural das coisas
sempre decaí na entropia generalizada depois de executada sua função
existencial.
Ao fim, para além do racional e o irracional, a única coisa que dá
qualquer sentido às coisas do mundo é a presença da mente reflexiva do ser
humano. Basicamente estamos aqui para dar sentido ao Universo inteiro,
incluindo aí os fatores das relações humanas.
É nesse circuito então que se clareia os esforços espirituais que
definem o indivíduo pneumático, o gnóstico, seja ele um artista nato, um
místico ou um simples indivíduo de alma amargurada e desassossegada.
- A influência irracional no mundo
Diante toda violência do mundo, a Gnose vem à mente em um estado de
suspensão, quando ela, a mente, abandona o sentido de finalidade racional de
sua presença no mundo e revertendo tudo para si, a mente declina na entrega à
força da correnteza que sempre aponta, de ponta a ponta da vida, à inexistência, à morte, ao não-ser.
Por isso os grandes temas da Gnose sempre tratam de uma forma ou de
outra sobre o Nada. O Nada é a essência fundamental dos maiores afetos da alma.
Assim também as mais interessantes, significativas e perturbadoras
expressões artísticas humanas sempre giram em torno dos temas da Eternidade,
Morte, Esquecimento ou Memória, Dissolução ou Renascimento, Queda ou Fracasso,
Fuga, Loucura, etc.
Nos textos gnósticos vemos também essas questões incluídas dentro da
meditação espiritual ou espiritualista, vide o “Hino da Pérola”, “O Trovão:
A Mente Perfeita”, “A Hipóstase dos
Arcontes”, e o atual “Os Sete Sermões
aos Mortos” de Carl Jung, entre outros. Tal fator é também notado em temas
caros recorrentes de muitas religiões, haja ver as cores psicológicas em
expressões religiosas como “noite escura
da alma”, o Nirvana e a Moksha Budista, o “morrendo é que se vive” de Francisco de Assis, as batalhas de
Krishna e Arjuna, a Juhad islâmica, as inspirações da Ayahuasca, os mundos
paralelos dos Xamãs, a travessia do “Abismo de Daath” da Cabala, as lamentações
de Jó, a Yoga apaziguadora do ego, etc.
As anomalias são justamente as expressões atuais da religiosidade com as
forças psíquicas guiadas à prosperidade, à felicidade materialista e ao
“complexo de plena luz espiritual”, algo que Jung percebeu como extremamente
danoso à sanidade humana como um todo, tanto física como psíquica.
Nos temas clássicos da Gnose, como em Basilides, a função dessa
inspiração divina está focada na lembrança de nossa ascendência Divina e na
redenção desta matéria mnemônica, onde a evolução do Universo e do ser humano
dentro dele fazem as vezes de um caminho rumo à plena conscientização do
significado da vida, sempre rumo de volta ao Não-ser. Algo parecido ao que a
Filosofia grega, oriunda da forte influência cultural e espiritual das visões
expansivas de Elêusis denominou como o “Conhece-te
a ti mesmo…” e a Teosofia moderna, o gnosticismo atualizado, define como o
reconhecimento final por parte do indivíduo do Arquétipo que cada um executa em
suas existências afins.
Tudo isso converge para a noção de que não é pela inteligência que
seremos salvos, não é pela razão que o ser humano logrará atingir a meta de
liberação das agruras das encarnações sucessivas, mas sim pela aproximação do
substrato indiferenciado advindo das sombras do inconsciente, dos parâmetros
não humanos e irracionais que agem dentro do Universo e que talvez seja a
influência real do Verdadeiro Deus fora da materialidade, o retorno ao que era
antes do início, como o representou Basilides (cf. Hipólito):
“Quando digo ‘era’, não
quero dizer que aquilo era,
e sim expressar o que
quero indicar, eu diria que
nada realmente era. O que
é assim expresso não
é absolutamente inexpressável: nós o chamamos
de
‘inexpressável’ mas não é nem mesmo
inexpressável.
É superior a qualquer nome que possa ser
designado”.
- A ignorância no final de tudo
Do mestre gnóstico Basilides, por fim, ainda há uma interessante
referência a esta tal irracionalidade ligada ao fenômeno da Gnose, que é a
“grande ignorância” (leia mais sobre isto no meu post…).
Por causa de eventos nefastos que destruíram a obra de Basilides,
crê-se, entre os estudiosos, que tal conceito foi mal relato ou até
incompreendido pelas fontes “oficiosas” que relataram e destrataram o pensamento
de Basilides, e que chegaram até nós, principalmente sobre o tema da “mega agnoia” ou grande ignorância.
O fato é que a “grande ignorância” é o termo que designa a resolução
final de todo processo evolucionário do Universo e do ser humano dentro dele,
os quais depois de cumprirem a função rumo à reintegração do espírito de volta
à Eternidade graças à revelação do Evangelho Eterno via Gnose, o Universo será
enfim abandonado por qualquer função espiritual, qualquer capacidade racional
de entrever as coisas espirituais, e uma grande ignorância de tudo cairia como
um véu de fogo entre o mundo material e o transcendente. O que ficar aqui
seguirá em um estado de animalidade, como em um sono, até a extinção
físico-energética de tudo no Universo.
Essa “grande ignorância” seria então um retorno das coisas ao seu lugar
essencial dentro da irracionalidade ontológica fundante do mundo, que detém,
mesmo sendo de outra qualidade da Eternidade, a marca desta.
A irracionalidade, a mesma que conduziu a matéria e a formação da
Natureza e da consciência humana, esta que abriga o Espírito ou a Mônada Divina
no ser humano, prosseguirá operando, até se exaurir também. Vemos aqui que a
natureza de tal “irracionalidade” não é ao pé da letra o que definimos por
irracional, mas algo mais profundo, para além do que está só subentendido no
pensamento, na mente, seria já a propensão para aquele próprio ‘sono’ que
alcançará tudo como ‘ignorância’, não-saber, estando assim estabelecida sua
relação essencial com o Não-ser, o que explica a liberdade ou potência que
permitiu ao Demiurgo contruir sua obra.
- Arquétipos & Arcontes
“Honra
na fera o espírito que fermenta…
Cada
flor é uma alma em Natura nascente;
Um
mistério de amor no metal reside dormente;
‘Tudo
é sensível!’ E poderoso em teu ser se apresenta.”
Nerval
De certa forma então, os artistas que se embrenham na senda da cessação de
todo pensamento racional estão em sintonia com a finalidade fundante do
Universo, a própria irracionalidade ou inconsciência, que carrega dentro da
economia Divina, certo grau de rebeldia.
Tais artistas, e também os raros pneumáticos de uma forma em geral, são
sempre os que se aproximam das latitudes misteriosas e sempre sombrias, sendas
não só de luz e nem só de trevas, que levam fatalmente à Completude tão
almejada pela Alma.
É no esforço de criação humana, nas obras de arte, que se lega aos que
já estão adormecendo, aos sonâmbulos espalhados nas ruas pelo mundo, um último
susto irracional diante da indiferença humana por tudo neste estágio da
História, que a Razão tenha falhado em acudir contra isso é plenamente
compreendido levando-se em conta que ela nunca esteve em condições de propor à
humanidade caminhos para realizar na realidade cotidiana os anseios mais
honestos que nos foram expostos em nossos sonhos.
Se nossa messe neste estágio evolucionário é reconhecer o arquétipo que
representamos, os artistas foram, dentro do seio da humanidade, os que
adentraram neste saber foram os gênios, que efetivaram na vida a energia
latente de sua inspiração, aos demais só resta ainda estarem sujeitos à lógica
que atua como o Arconte atual da humanidade, designando-nos à uma vida tediosa,
sem originalidade e imersa no medo.
É isso que dá, almejar ser
cordeiro e aos lobos respeitar,
É nisso que dá, temer seu tigre interior e as
garras do espírito
não afiar!