“Viajavam
no céu noturno de maio, como sempre viajam, três ‘grandes sombras’.
Seres soturnos, sem explicabilidade, singram
juntos ou sós, as imensidões atmosféricas sempre a Oeste, para onde a noite
vai.
Lá no alto, pouco abaixo das poucas nuvens
de uma noite de quase Inverno, longe, iam as três, os três, em três.
Jambalalauum, Godagarumnam e Blooommuk, três sombras, três coisas mais escuras
que o céu da noite, três seres sem explicação.
Atravessavam mansas um planalto, acima de várias
paragens esparsas, pequenas fazendas, um imenso pasto total, duas cidades
próximas, três rios pequenos, quatro estradas que se cruzam e a soma de toda
natureza esparramada pelo chão que naqueles momentos o oceano da noite banha
com sua ausência de luz em descanso, parte natural das coisas, o complemento do
dia.
Há de se dizer sobre esses seres que existem
às centenas neste nosso mundo. Pouco se sabe de sua natureza, como nascem, como
crescem, como morrem. Os meios de se saber tais coisas são inescrupulosos e há
poucos que pagam tal preço de obsessão, uma nutrição psíquica profunda.
De sua natureza de caráter são mansos como
bois, mais entendido pela sua lentidão geral em se mover, como se estivessem em
câmera lenta. De seu caráter real só se sabe de sua curiosidade impessoal e até
destemida, de uma intrepidez transcendental em desvendar e vencer as
resistências daqueles com os quais eles se decidem comunicar, têm um senso de
humor estranho para nossos parâmetros humanos e sabem muito bem fazer-nos ver
suas observações sobre coisas erradas, não um moralismo, mas um impacto de
constatação lógica e sentimental ao mesmo tempo, que desfalece qualquer
argumento.
Xamãs, pajés, médiuns das matas,
feiticeiros, ocultistas, estudiosos do misterioso afins as definem como se
fossem bisões a cruzar os céus, não só pelo seu tamanho, também por sua
mansidão, mas principalmente por sua indiferença por tudo mais a não ser quando
querem realmente entrar em contato com quem os interessa.
Não que sejam mesmo mansos, mas para padrões
humanos e da natureza selvagem em geral, não são realmente violentos, esses
seres tem sua característica personalidade, se é que se pode se incluir
criaturas tão estranhas em tais parâmetros humanamente conhecidos. Eles tem um
ímpeto superior, indiferente à tudo que não lhe devem motivos, são mesmo como
sombras que seguem sempre para onde a noite vai, e isso revela mais de suas
personalidades do que qualquer outra coisa.
Às vezes, no entanto, algo ou alguém chama
sua atenção, e eu tomei conhecimento desses seres em uma dessas situações onde
eu fui alvo dessa sua atenção intensa e narrarei mais adiante, uma aventura
dentro de um deles, e ele dentro de mim mesmo.
Aquilo que chama a atenção deles em uma
pessoa seria um estado peculiar de consciência, aquele estado em que a mente
fica depois de passado o efeito de um tal veneno conhecido como “veneno para o
ego”, chamado de Ayahuasca, e popularmente difundido sob a alcunha de hoasca, o
“vinho dos mortos”.
Depois de se ingerir tal substância, o
individuo fica cerca de algumas horas na embriaguez psíquica produzida pela
bebida, e depois de se passar o forte do efeito, durante algum tempo ainda
ficam os ecos ressonantes das experiências vividas durante o transe referido,
ainda tendo o indivíduo o que se chama do sombreamento causado pelo efeito de
tal experiência, um ressabiamento colateral. É sob estas situações que as
grandes sombras têm sua atenção desperta para com um ser humano, nesse êxtase e
no pós-êxtase particular que chamam muito sua atenção.
Voando em grandes alturas elas podem sentir
tal emanação da mente humana, é como se elas sentissem de longe o odor de tal
químio-gnose, como animais mais dotados de grande poder olfativo sentem o
cheiro do cio das fêmeas de sua espécie, outros sentem o cheiro da morte em
cadáveres e outros são atraídos pelo odor de flores. Para essas sombras, tal
estado da mente é um convite irresistível para se aproximarem e intercambiar
com tal pessoa.
A mente em tal estado está na situação
favorável para a conexão que tais sombras podem conseguir, e nisso elas tiram
proveito, como uma diversão, ou um estudo, ou até como um ato de nutrição para
elas próprias. A mente humana, assim estando, proporciona para essas grandes sombras
a possibilidade de uma simbiose onde elas podem saber o que a pessoa contatada
sabe, ter acesso à sua memória, vivenciar seus sentimentos, fruir por entre
sonhos e pesadelos, ver pelos olhos desses à quem elas se incorporam pelas vias
expandidas da mente embriagada pelo transe ayahuaski.
Esse interagir tem dois lados bem
diferentes.
A pessoa obsedada pode apenas ver de relance
o forma disforme total da sombra, mas sente plenamente sua presença manifesta
através de percepções nunca antes sentidas do meio em que está envolto, como se
todo um mistério noturno ganhasse coragem de se apresentar também aos olhos do
individuo, mas na verdade estes mistérios se apresentam aos olhos das sombras
que normalmente os enxergam mesmo nas distâncias das alturas e na escuridão da
noite. Podemos perceber então aquilo que se esconde nas sombras, nos relances,
na fumaça, no fogo, dentro do torvelinho, escutamos as sobras dos estrondos e
os odores das alturas vencidas em chuvas de serenos, entramos como que empurrados
nas mediações da noite enoitecida pelos próprios seres que só vivem aí, com a
pouca luz e calor doados por uma estrela que agora ilumina outra parte da
esfera planetária, a natureza das costas do planeta...
Os conhecimentos que uma pessoa pode em retribuição
ter em uma jornada tal são os conhecimentos da penumbra, os conhecimentos dos
sonhos despertos de uma criatura fantástica, raramente notada e com suas
pulsões próprias. Adentramos em um saber de ser sem intenções maiores, como o
saber particular de cada animal, de existência vertical, mas no caso de um ser
como essas grandes sombras há algo a mais, uma consciência de amplidões catatônicas,
um saber intra-real, pós-experiência, uma intermediação sensorial plena.
No caso da grande sombra o que ela ganha, ou
toma posse, é deveras mais interessante. Não podendo ver o dia, elas nutrem-se
da memória da pessoa das coisas desses dias, da luz do sol, estranha a eles,
pois ao mesmo tempo essa luz quer dizer sua fuga e sua cova, sua
impossibilidade de existir, mas a possibilidade do ser humano e das coisas da
natureza existirem, um estranho alinhamento de perigo e aviso sempre renovado
para se manterem distantes, mesmo que as coisas no final dependam de tal luz.
Além dessa memória em particular, as sombras
acessam os sentimentos humanos, tão caros para quem não os tenham, pois podem
se deleitar em sentir essas coisas como quem assiste a um filme ou lê um livro,
um ser tão imenso e complexo brincando de catarse com uma criatura tão simples
como os homens.
As grandes sombras parecem também se
alimentarem nessa simbiose, elas sugam restos finos do liquido misterioso
circulante nas veias e intestinos dos indivíduos, além da energia particular
que perpassa na mente do psiconauta. Talvez mesmo por isso é que são atraídas
justamente por essa situação especifica, ao assediarem um individuo em plena
fruição da gnose ayahuaski faz com que tais sombras se compenetrem em plena
miração extática, revelando muito de sua presença e de seu ser, mas sempre de
acordo com sua vontade.
Há de se fazer notar que alguns
conhecedores da existência desses seres especulam sobre suas intenções e sua
natureza. Uns creem que eles fogem do dia por não poderem existir à plena luz,
sendo desintegradas, pois sendo elas um reflexo, uma idéia de uma interseção,
aquilo que as desmascarasse as faria inexistentes, que um dia por um fator
especial, uma interposição de corpos impares e luzes desconhecidas, tenham
surgido suas sombras e por um ímpeto de algo exterior, fez-se necessário, ou
não, elas serem. E desde então correm da aurora, sempre dentro da noite do
mundo, vão pastando luares, bebendo sonhos humanos e animais, migrando com os
ciganos, sempre.
Porém existem também aqueles que digam que
na verdade elas procuram o dia, perseguindo-o, mas procuram justamente um dia
especial em si, aquele onde a luz que as criou retorne para que elas possam
então penetrarem em tal disposição das coisas e serem outras, talvez evoluírem,
talvez descasarem. Vão assim perseguindo o crepúsculo de sua completude, até
encontrarem o fim do dia em especial em que terão algo de sua própria natureza,
algo que tenha um sentido só para elas. Talvez ainda cumpram uma missão e tenha
que permanecer na sombra de toda consciência.
Caminham então séculos e séculos dentro da
sombra da Terra, seguindo uma sina de sombras dentro da sombra, nem felizes nem
tristes, nem temerosas nem esperançosas, pois também morrem de velhas e nascem
em novidades, de cópulas auto-induzidas e parição de aparições, são.
Talvez nesses particulares de sua estranha
natureza, o pouco que sabemos sobre elas, possamos entender sua função, seus
porquês, como vivem e questões desse naipe. O caso é que respostas para tais
questões são impossíveis de se ter, ficando tudo nas conjecturas e suposições, e
assim como não recebemos respostas às perguntas que fazemos aos animaizinhos de
estimação que agarramos em nossos braços, são elas, as grandes sombras que
arrancam respostas de nós, por uma ciência da simbiose transcendente, que
naturalmente elas fazem uso.
Pois então um desses seres, aquele de
nomeação Blooooommmuk, que no inicio citei, em uma noite de Maio, quando eu e
mais dois amigos voltávamos de uma jornada ayahuaski na área rural de nossa
cidade, ela nos interceptou. Nesse dia, nessa noite adentro, aquilo que para
mim eram estórias de pajés contadores de mitos indígenas, se tornou uma
experiência intrigante, onde pude começar a entender os motivos ensombreados
destes seres.
Havíamos ido tomar ayahuasca em uma chácara
à cerca de uns trinta quilômetros do centro da cidade. Lá, por volta das oito
horas da noite tomamos uma boa dose do liquido em volta de uma mesa sob um teto
de palhas de coqueiro e por horas vagamos livres por entre paragens mentais e
nos astrais da porta entreaberta pelo elixir da desintegração das amarras
psíquicas, vendo lugares fantásticos, assistindo desdobrar de cenas
indescritíveis e recebendo ensinos dos mestres dos astrais, nossos guias e
auxiliares espirituais e tantos outros guias dos sonhos que tem a permissão de
nos ensinar.
Depois de findada aquele ritual arquetípico,
passado o grosso do efeito do chá das mirações, voltamos então para a cidade em
meu velho carro. Eu na direção indo levar meus dois companheiros para o outro
lado da cidade, para a claridade apagada das nossas casas em repouso na hora do
sono das coisas, vi no céu as três grandes sombras. Eram como três
anti-reflexos arranhados no céu escuro.
Na estrada escura, ao terminar de subir uma
extensa ribanceira leve, tive na minha frente a visão ampla do grande planalto
que servia de contra-forte ao acesso das imediações da cidade, sem que porém
ainda as luz da cidade interferissem em qualquer visão do céu ou dos arredores.
Era tudo noite sem luzes artificiais.
Percebi pelo canto do olho, dispostos à
minha esquerda, como se rumando à nordeste, onze horas do ponto de vista em que
eu estava, a procissão ínfima daquelas sombras. Foi de relance, mas
instantaneamente tomei ciência de suas presenças lá, pois nesse exato momento
elas também tomaram ciência de mim e de minha percepção delas. Estava dado,
pois, o contato.
Aquelas três “coisas” podiam ser qualquer
coisa. Podia ser uma nuvem, podia ser um OVNI, podia ser um avião, mas a
sensação indiscutível de quando as percebemos não deixa duvidas, há uma espécie
de vida sentida ali, para ser mais preciso, uma existência, uma grande e
sombria presença.
Meus dois companheiros dormiam, exauridos
pelo baque posterior da forte dose ayahuaski que tínhamos tomado, mas no
momento que tive toda a percepção das sombras murmurei que tinha notado algo,
disse uma frase como “- Olha só!!!”, engolindo o comentário posterior que
pareceria estranho até à mim se o dissesse em voz alta, mas o que pensei como
complemento daquela interjeição fora algo como “- São três grandes seres lá ao
longe... seres sombras...”.
Usando o poder latente da ayahuasca para me
concentrar na estrada, no ato de dirigir, o fato de perceber as grandes sombras
fez com que minha consciência se expandisse novamente, abrindo o sinalizador
para que uma dessas grandes sombras seguisse o sinal até mim.
Em sua imutabilidade Bllloooommuuk me
pressentiu e desgarrando-se das demais sombras ela fez uma manobra densa, uma
enorme volta baldeando por quilômetros e quilômetros, e lentamente veio
emparelhar à grande altitude sobre meu carro, isso quando já havíamos nos
aproximados dos bairros mais periféricos da cidade. Ali em cima de nós, ela
voou vários minutos sentindo o odor psíquico que exalava nosso pós-êxatse, já
emanando em nossa direção também seus ecos de sombreamento, no que pude
perceber uma alteração sutil da iluminação em volta do carro, só sendo possível
ver isso graças ao estado de percepção e acuidade causado pela ingestão da
ayahuasca.
Foi como se no volante, percebesse uma
diferenciação de iluminação da própria estrada, parecendo diminuir o grau de
escuridão natural de estrada não iluminada, uma diferença de luz como se de
repente uma noite de lua crescente se tornasse noite de lua nova.
Tal penumbra se abateu sobre nós com o pouso
da grande sombra sobre nosso entorno, penetramos no próprio ser e sonho da
sombra, seu corpo feito de efeito óptico e intersecção, sua própria
existência... seu mistério próprio...
E de imediato ela fez sua conexão quase
mística conosco, e a partir deste ponto só posso falar por mim. Meus amigos em
seus sonos mais se aprofundaram e a grande sombra mergulhara também em seus
sonhos e pesadelos, lembranças e sentimentos sonâmbulos em suas vivências
oníricas. Ao mesmo tempo a grande sombra estabelecera sua ligação comigo, e se
por um lado ela dormia e sonhava junto a meus companheiros, por outro ela via e
sentia comigo, enquanto por sua vez me doava um estado de consciência impar,
extravasando ambos estados fisioquímicos e psíquicos que geraram em mim a
atenção da penumbra, o encanto do eclipse perene, o dom da noite.
Minhas veias e espírito alterados, tornados rubro-escuro
o meu corpo e alma. Tudo se tornara outra coisa, nem aquilo nem isso era algo
que era, mas entretanto não era mais até que o beijo sombrio do ser sombra me
abandonasse.
Fui guinado e sendo guiado e posso dizer que
não agradava à grande sombra o semi-ato de guiar um maquinário, a desagradava o
fado de ser conduzido, mas a isso de certa forma, de sua forma, se resignou
tendo-a como uma experiência a mais.
Eu de minha forma aquietei um certo pânico e
uma certa repugnância de obsessão e me quedei no estado estranho que me causava
uma percepção diferenciada do mundo. Naquele momento eu sabia que ali ao meu
lado, em mim, havia aquele ser que eu notara no céu e que atrairá sua atenção,
no momento do contato eu me lembrei das histórias e de tudo que eu sabia sobre
elas, além de ela própria me esclarecer sobre sua presença junto a mim, de
certa forma para me acalmar, como se dizendo que nossa permuta seria mais do
que justa para comigo.
Fui então seguindo na estrada.
Em minha mente eu ouvia uma espécie de
canção, como se fosse uma ventilação de idéias da própria grande sombra que
cantarolava sua cantiga de estrada, um fio condutor de tranquilidade, ela cantava
algo assim:
“...
blooooooooooooommmuuuuuuuukuuuuuuuummmooooooooooooolb...”
E variava tão palavra, seu próprio nome,
como um mantra, alterando sonoramente a altura de cada som, e intercalava
versos, que ouvi na nossa língua:
“... bloooommuk... aqui/ali/lugar-nenhum
para a ti ver/sentir/cheirar/ouvir...
... emanações de escuro/claro/penumbra
de mente/corpo/nódoa presença nossa...
... você(s)
flor(es)/planta(s)-inversa(s) blooommmuk inversa-presença...”
E assim ia e se repetia tal cantiga de
nuvem-sombra onde um termo quereria dizer várias coisas e seu próprio contrário
ao mesmo, uma intelecção da noite em sua natureza expandida até aquele ser.
Depois de algum tempo se calou e fomos
nesse silêncio pela senda obscurecida pelos meus próprios olhos. Atravessamos a
cidade assim e pouco reparei na soma total das coisas, mas apenas certos
detalhes fantásticos que a vida toda se tornara.
Bloooommmuuk tinha mais de 300 anos e suas
lembranças viam à todo momento se fundir com algum detalhe da estrada ou das
coisas da cidade. Uma curva da estrada era então uma curva da estrada de minha
cidade e era a curva de uma estrada nos confins do Peru onde serpenteava rumo
ao litoral desde os Andes; uma qualquer árvore era uma árvore qualquer, mas era
também uma árvore de uma floresta sem nome que fora consumida no calor de uma
noite de verão por um incêndio de diversos dias e quase todas as árvores foram
durante alguns instantes árvores em chamas ardentes vistas de cima e pelos
olhos de um índio em comunhão de yagé pelas matas onde fugia.
Tudo que eu via ganhava um apêndice
temporal e memorável da memória da grande sombra ou talvez de diversas grandes
sombras e assim o caminho se tornou uma jornada ao profundo esquecido dos
tempos e lugares onde a memória da grande sombra mais parecia um redemoinho de
conexões e amplidões dimensionais.
A certa altura chegamos à cidade e o luminar
elétrico fez fugir de lugares profundos lembranças das primeiras cidades assim
iluminadas e como com o passar dos anos e o sobrevôo das grandes sombras para
cada vez mais longe de seus centros luminosos, as luzes cresciam como um fungo
na superfície da terra.
Um poste de luz de concreto se tornou uma
fascinante recordação de antigos postes de luz à gás e postes de madeira, assim
como de diversos outros tipos, mas a luz era o ponto perene entre todas as
recordações e nisso inserido um certo receio que se fosse sentido por mim eu
chamaria de sentimento ancestral de medo.
Passamos por um grupo de pessoas que andavam
tarde da noite pelas ruas, talvez um pouco embriagadas e vi emanar delas certos
eflúvios que diria serem espiritual, um miasma metafísico dissonante espalhando
por toda rua como uma certa decepção material onde a própria matéria gritava de
revolta contra o desperdício de tempo e energia por aqueles seres ali, se
matando de uma forma lenta e dolorida.
Em frente a certas casas eu via suas
fachadas se transformarem e se remeter ao passado e de suas portas via sair
seres, ecos de lembranças da grande sombra por onde outra hora passeou pelos
escuros das ruas das noites do passado. Um relance, um susto, um sentimento
qualquer, todos repousando no mesmo lugar, guardados na memória da sombra.
Cruzamos a cidade assim e ao chegar à casa
de um de meus amigos, a dificuldade em despertá-lo foi grande, se ergueu como
um morto, tenso, pesado e meio sonâmbulo saiu do carro, adentrando na sua
residência.
Andando mais uns poucos quilômetros deixei o
outro companheiro e ao contrário de outras noites onde sempre fazia esse
itinerário e ali com este amigo, meu xará, sempre prolongávamos nossas
conversas, desta vez ele se despediu sonolento, e foi logo para dentro de sua
residência sem sequer dar atenção aos seus cachorros.
Sozinho, então tomei caminho o rumo de
minha própria casa que não estava a menos de uns sete quilômetros de onde eu
deixara meu último passageiro do sombreio, peguei caminho e uma efusão então
tomou conta de mim, como se a grande sombra concentrasse então toda sua
presença e atenção sobre mim.
Pelas ruas escuras os cães latiam
insistentemente para mim enquanto passava e gatos corriam desesperados ao me
ver de longe, corujas e outros seres da noite ficavam confusas ao me verem passar
e se espantavam ou recolhiam quietos à qualquer refugio de bichos.
Ao longe, em uma avenida muito comprida e
reta, parecendo mais reta e comprida do que de costume, pude visualizar um
bando de cães na rua e ao me aproximar vi que eram três cães e tive a impressão
que comigo, naquela noite eu não havia visto três grandes sombras no céu, mas
vira três cães e um deles me perseguiu desde o mato até ali; mas então lembrei que
eu não havia visto três cães no mato, mas vira três grandes peixes em um lago e
um desses peixes me seguira pela margem do lago; mas me confundi, eu na verdade
vira três abutres magníficos que voavam em torno de três cadáveres que se
moviam pelas estradas do mundo rumo à suas sepulturas... e fui assim durante
breves momentos em cerca de duzentos metros tendo essas reminiscências
violentas e fantásticas onde eu vivenciava cada uma dessas experiências
diferentes ao longo do caminho, antes ou depois dele...
E aquilo era um forte desnorteamento de
tempo, lugar, espaço, e sentia meu próprio corpo e alma plenamente confundidos
da sua mesma existência onde a estrada nada mais era do que a ilusão do
movimento e o tempo a percorrê-la uma fantasmagoria de fuga de outros planos e
hemisférios do cosmos. Talvez de outras realidades paralelas.
Nisso, Bloooommmuk me disse então que era o
fator da desintegração, a despedida, o futuro começo de uma mahapralaya que eu
buscava incessantemente em minhas aventuras psiconaúticas pelas matas e nas
substâncias do mundo, ele potencializara essa própria experiência como um
dejeto de sua experiência pelas ruas sujas da humanidade.
Diminui instintivamente a marcha do carro,
ou a grande sombra fez isso. Ao longe ainda, no fim daquela avenida, pude
observar um eflúvio estranho, fumaça saia de um monte de coisas que queimava na
noite, talvez um monte de capim e entulhos de um terreno baldio, mas pude ver
de forma clara, dentro daquela fumaça, coisas muito mais estranhas que a forma
da fumaça sendo levada pelos ventos noturnos.
Pude ver, e quando vi acreditei ser real,
que estava por detrás da fumaça uma manada de elefantes correndo, e seguindo-os
uma manada de cavalos selvagens sem ninguém os montando e cogitei rapidamente
que alguém devia ter soltados os elefantes e os cavalos de seus currais.
Aquelas esdrúxulas constatações, que por
alguns instantes pareciam serem muito plausíveis e sérias para mim, foram
interrompidas por algo mais estranho ainda, e só posso pensar que a gargalhada
de Bllooommmuk seria o som mais estranho que já ouvira, mas essa impressão logo
se perdeu no reconhecimento chocante que aquela última visão na fumaça havia
sido nada mais do que uma piada da grande sombra, uma forma dele descontrair-se
e despedir-se de mim, e foi como o fez.
Logo após tal fenômeno muito insólito
também, tão ou mais insólito que tudo que vivi naquela noite, o senso de humor
da grande sombra deu o toque finalizador em nossa simbiose, me aliviando do
peso daquela possessão.
Nem tristeza nem alegria senti, apenas tive
a sensação de como se um enjoo passasse. Cheguei em casa e só no outro dia,
depois de desperto e sob a luz do sol comecei a me lembrar desta aventura. Muito
tempo depois só a comentei com meus outros dois companheiros e deles não colhi
impressões nenhuma daquela noite. Eles apenas dormiram e sonharam sonhos que
não se lembravam.
Quanto
à essas grandes sombras, tenho comigo sempre o risco de poder encontrar outras
delas pelos céus noturnos após um ritual de ayahuasca, e sei da inevitabilidade
de fugir delas, então prefiro não pensar do quando tal experiência ocorrerá de
novo, mas me mantenho atento e firme, pois posso qualquer hora dessas ser
tomado novamente, e tenho que praticar a memória, pois esse é o único ganho que
nós humanos temos ao sermos possessos por esses estranhos seres.”
(Capitulo do livro "Belatrix - Paradoxo das Sombras" de Eduardo Moura Tronconi - Baixe a obra completa aqui: https://pt.scribd.com/doc/264293893/Belatrix-Paradoxo-Das-Sombras)