26 de set. de 2024

Atentamento

 

Se nem a dor mais incomoda
   ou ainda virá a incomodar
      somos confinados ao encantamento
      de não perceber as maravilhas de existir
Eu passo o olhar
   no delineamento das formas que passam
      & aprecio o belo & o feio que compõem
      a perfeição dentro da imperfeição
Assim os sentidos lutam
   desvelando novas formas de sentir
      para por a dor no seu espaço certo
      & o prazer em todos os tempos



25 de set. de 2024

Alheamento

 

A todo instante
   tentando acordar
      do sonho dentro do sonho
      que nos mantém cativos
O corpo atento
   inquieto com o sono
      tendo que combater primeiro
      o sonambulismo próprio & alheio
É tudo uma luta
   de corpo & mente
      contra uma derrota programada
      pela máquina do mundo



23 de set. de 2024

Matinal (um haikai extendido)

 

Cinco & trinta da manhã
Pura segunda-feira

As pessoas saem para as ruas ainda escuras
Daqui sete minutos o dia vai clarear

O sol não vem carente como a maioria de nós
Virá quente

O que posso dizer sobre a semana,
   cinco dias a passar,
Cabe em um haikai extendido por oito sílabas:

Aguentar até sexta-feira!



21 de set. de 2024

Riscos

 

Só depois de me envenenar
   me arrependo
      & não tem como pender
         pro lado da lamuria, resta tolerar
Antídotos são prescritos
   & no sono ainda agito
      mais do que orações
          para se evitar o mal a me corroer
Os riscos no corpo
   são crateras, traços de colisões
      que não se pode evitar
         mesmo podendo se prever
Eu tenho duras penas à cumprir
   & deixar outras para escrever
      antes que seja tarde
         a morte pelos venenos chegar
& os riscos que não recortam
   só rabiscam no confuso corpo
      cravado de alma, mapa sem norte
         & abismos a se percorrer
& preste atenção, aguente calado
   porque a vida é selvagem
      mas a existência há de retribuir no equilíbrio possível, sem se importar com os outros
         um mesmo certo tanto de sofrimento & delícias para cada um de nós


 

19 de set. de 2024

Vou-me

 

Vou, pernas pra que te quero
   Já que não são as suas
Eu ando nos meu próprios passos
   Há muito já perdi sua trilha
         ...a sua falta de afeto abortou-me...
Vou, tomo café na rua
   Como um pão salgado
Amassado por uma máquina fria
   & o chá coado do pó da mania
         ...a desnutrição imunizou-me...
Vou, para esse lugar
   Que parece que não ter oxigênio
Sinto falta do ar
   Que respiramos juntos
         ...a superstição alheia paralizou-me...
Vou, não voo
   Por entre os olhares de arame farpado
Por entre os regatos de lama & lágrimas
   Onde meu corpo afundou
         ...a areia movediça da convivência convocou-me...
Vou, já não tenho mais direção
   Nem pernas passos ar lugar
Sou resíduo de um sonho que tive
   & jogado no mundo esgotou



16 de set. de 2024

O Vale Invertido

 

O vale invertido,
         Buraco Chiqueiro Curral
   onde as sombras são o próprio chão, que se movem como lâminas com o rolar do Sol, & se apagam como corte com o reflexo do luar...
O vale invertido,
         Zoo Canil Quintal
   onde os homens são fêmeas de barba, as mulheres animais com garras & as crianças conversam com espelhos, & todos para entrar saem de suas jaulas...
O vale invertido,
         Açougue Puteiro Selva
   onde os escravos não produzem nada & os senhores se reduzem ao fado para se ganhar a vida que mais parece com a morte, cada dia indefinido é igual ao que já passou & ao que virá...
O vale invertido,
         Fossa Quebrada Favela
   onde mediocridade é superioridade,  violência é carinho, a ignorância é pública & a inteligência raridade...
O vale invertido,
         Deserto Pântano Prisão
   onde todos vieram do mesmo lugar mas cada um pensa diferente, uma Babel de cabeça para baixo, apesar de falarem a mesma língua, não conseguem se comunicar...



15 de set. de 2024

A

 


“A mulher é mais poderosa
do que a oração, do que o
jejum e, perdoe-me, Deus,
do que a virtude"
-Nikos Kazantzakis


Há essa lenda
Que anda claudicante de boca em boca
Pelos subúrbios das galáxias beligerantes
Que a carne das putas é diferente
Corpos santos & profanos
Que pertencem à todos & ninguém

Há esse sentimento
Que pulula como vírus de língua em língua
Pelos cantos profundos dos infernos astrais 
Que a carne das beatas é intocável
Corpos fechados & arrebatados
Que pertencem aos anjos & ao deus

Insanas & profanas
   todas elas iguais...
Sedentas & hereges
   todas elas a mesma...
Puras & imaculadas
   todas elas...



13 de set. de 2024

Destempoespaçoralizar

 

Se pudesse acelerar o tempo
   ficaria mais perto dos finais
Se pudesse acelerar o tempo
   ficaria mais longe dos começos
Se pudesse acelerar o tempo
   ficaria no mesmo lugar
...
..
.
Destemporizar/Desdistanciar/Destinar
.
..
...
Se pudesse encurtar o espaço
   estaria à um passo de tudo
Se pudesse aumentar o espaço
   estaria inalcansável também
Se pudesse abolir o espaço
   estaria em toda & qualquer parte
      ...no começo & no fim...
         ..na eternidade..
            .na pura & perfeita desrelatividade.




8 de set. de 2024

Dias Perfeitos

 

Todas essas coisas que se repetem
   estão acontecendo pela primeira
      & última vez
Todos os dias perfeitos
   precisam só de um pouco de calma
      para aflorarem sua beleza
Com todas as coisas no lugar
   o que falta remete à confusão
      por onde deslizamos para viver a tristeza & a felicidade
         da mesma forma 


 https://youtu.be/kxviob3j5Dw?si=sNfbJieoZ5dU9idz

5 de set. de 2024

Antes de Tudo Isso

 

Eu ainda me lembro
   como era a claridade das manhãs
      antes de tudo se tornar
         um reflexo do que foi...
Tanta imitação, tanto brilho fugaz
   & nenhuma luz...

Eu ainda me recordo
   como era o silêncio das manhãs
      antes de tudo se encher
         de ruídos parecendo mensagens...
Tantas vozes, tanto falatório
   & nenhuma melodia...

Eu ainda relembro
   como era a paz das manhãs
      antes de tudo se confundir
         com pressa, opinião & insanidade...
Tantas lutas impossíveis de vencer
   & nenhum ato de honra...



3 de set. de 2024

Duras Alegrias

 

...& o mundo é esse vendaval
   onde quase nada fica de pé,
carregadas para lá & para cá
   como folhas que vão secando em plena ventania
     nossas pegadas, da passagem por aqui;

...cada hora mais estranha
      vamos sacudindo na eterna novidade
         de um novo dia...

...vamos peregrinando
   entre o fixo que somos nós
      & o volúvel que é o resto
vamos suportando & desabando
   entre um sorriso & vários choros;

...cada vez mais calcificados
   no mesmo lugar que nos fixamos
entre uma dura alegria que é estar vivo
   & a pura tristeza que seria não estar...

 


1 de set. de 2024

Philia

 

Se você não me entende
   & não dá retorno
      às ninharias que te dou
   logo te darei distância
      & meu silêncio sideral

Sou como uma estrela no vazio
   preciso ser visto para existir
Tenho a necessidade
   que ouça o que te digo
Aqui comigo o "depois" não existe
   & o "ontem" não importa mais

Sou um fulcro
   que emana exigências pequenas
Pois o espaço na vida
   que sobra para mim é pouco
Mas quero dividi-lo com alguém
   porque dividir é aumentar
      nessa minha forma de amar