“Todos
os mistérios do mundo parecem leves em
comparação
com o minúculo segredo do sexo”.
- Michel Foucault
Esta semana estava eu no corredor de um
hospital público aguardando atendimento médico para o caso de uma inflamação em
minha perna. Ali para espantar o tédio lia um livro, e entre a sonolência da
espera demorada e a ponderação da leitura, e vez ou outra sendo distraido por
algumas poucas beldades enfermas, ao lado de idosos calados e crianças
choronas, uma voz mais alta começou a se destacar no corredor.
Na frente da sala de ultrasonografia, um
grupo de mulheres se acomodava nos duros assentos de alvenaria, e entre elas
uma senhora, lá com seus 40 anos de idade, começou a contar passagens de sua
vida de uma forma muito especial.
Em voz alta, logo qualquer um ao longo do
corredor de uns 50 metros pode ver, e ouvir, que ali ela estava a proclamar seus
testemunhos.
“Eu passei anos com meu marido, sofrendo de
tudo, ele era mesmo um espírito satânico em minha vida, me agredindo de todas
as formas que vocês podem pensar, e só Jesus pode operar um milagre em minha
vida e transformar a maldição que me atingia através de meu marido... Ele foi
uma desgraça para a mãe e para as irmãs e também comigo…”,
ela ia admitindo, alto e bem entoada. E a história desse período de sua vida
foi contada ao longo de uns 15 minutos.
Incomodados, outras vozes no corredor
tentaram atropelar o discurso da mulher com conversas diversas. Tudo ineficaz,
pois ela cumpriu sua missão divina de dar esse testemunho de fé para todos ali,
não só para as mulheres ao seu lado, até o final.
Quando ela terminou seu ato-de-fé, ela se
levantou e passou à minha frente rumo ao fedegoso banheiro público do hospital. Olhei sua face, marcada
por inteira pelo sol da labuta, e seus olhos, que expressavam apenas resquícios
da exitação de sua atividade findada, um misto de vergonha e coragem, vi neles
uma espécie de blindagem contra outros olhares, contra todos os olhos que a
encaravam ali; nós eramos alvo de seu amor a Deus expressada pela força de sua
fé em sua religião, o que fazia de certa forma que ela tivesse um eficaz
desprezo contra todos que ela não encarava de forma alguma.
Pensei primeiro que aquele devia ser o olhar
de todas as pessoas de fé no mundo, desde aquelas que tinham o impeto de
proclamar suas histórias de vida em lugares públicos, assim como de explodir
bombas ou condenar outras pessoas às fogueiras.
Nas mãos ela carregava um livro, que logo vi
não ser a Bíblia, mas sim um livro muito popular ultimamente, graças às
reportagens que mostram enormes filas em volta de livrarias no Brasil e no
mundo inteiro.
Fiquei ali então pensando sobre essa mulher,
sobre qual seria sua condição de vida, sobre aquelas coisas que ela havia
prontamente contado, como ela seguiu para ali com aquela proposta na mente,
sobre aquela sua face e seu olhar e sobre o livro que ela carregava.
Enquanto ela ainda falava me lembrei
ironicamente de uma passagem biblica, uma carta de Paulo, o grande pregador,
que admoestava para não se deixar as mulheres discursarem na assembléia dos
cristãos. Pensei “agora sei porque ele instruiu
isso!” e achei graça de minha própria piada desleixada, e ainda ponderei
que aquela mulher talvez estivesse falando ali por não poder falar no altar de
sua igreja.
Eu sabia que isso não era verdade, que hoje
mulheres pregam em nível de igualdade com homens, e até crianças, nos altares cristãos, falam
em programas de rádio e televisão, tanto evangélicos como católicos, etc.
Deixei para lá minha mistura de misogenia
religiosa, e naquele momento tentei me concentrar em minha leitura pois sabia
que aquela era apenas uma inferência de meu ego para suportar calado o discurso
dela, uma atitude de ironia enquanto ela enchia o corredor com as passagens
lamentáveis de sua vida, que ser humano nenhum merece passar.
Enfim vencido pela desconcentração, meu
raciocinio então se voltou para o que ela falava, e comecei a argumentar, não
com ela, mas mentalmente para mim mesmo, pois não tenho o impeto de confrontar
as pessoas a não ser que elas se dirijam diretamente a mim, aí gosto de
debater, mas não era esse o caso.
A
mulher não queria debater, ela queria apenas, de uma forma um pouco bruta e até
mal educada, pela altura de sua voz e o ambiente, propagar sua fé, contar a
todos sobre o que ela entendia da manifestação de Deus no mundo.
Reverti então seu discurso mentalmente,
prestei atenção no que justamente ela não contava, essas coisas que não falamos
mesmo em público, até quando damos testemunhos de vida tão contundentes e
intimistas.
Pensei nas dimensões psicológicas daquela
mulher, sobre sua vida sexual com satã, quer dizer, com seu marido alcoolatra e
violento, com quem o destino, ou Deus, fez com que ela se casasse. Pensei no
misto de satisfação e dor que se encobriam mutualmente em uma relação como
aquela, o que seria para ela o amor carnal, o que seria o descarrego do gozo,
ao que remeteria a vibração da carne recebida de alguém que fazia a face também
doer… O que seria para ela dar a ele essa outra face também?!
Pensei nas artimanhas da vida e da
sociedade, que gera a pobreza, as ânsias, as frustrações que um dia se
extravazam infalivelmente na existência das pessoas e atinge primeiro os mais
fracos, mulheres, crianças e idosos, no impulso de se “descontar” todas as
raivas e ignorâncias internamente cultivadas, de todas as exigências recusadas
de uma forma ou de outra.
Percebi como ela em nenhum momento expressou
o fato de o marido ter mudado pelo “milagre
de Jesus Cristo”, em seu discurso foi a vida dela que se transformou com
sua própria conversão à fé incondicional a “palavra de Deus”, ou seja, a
própria bíblia de Paulo e outros mais. Em meu pensamento seu marido era como um
objeto disposto ali, em um canto de sua existência, pois era assim que ela o
comparava em suas palavras, e principalmente no que não dizia.
Esse fato me sugeriu um paradoxo, o qual
interpretei como parte daquela própria blindagem nula que seus olhos e face
expressavam. Não havia uma comunhão terrena na sua história de vida, nada
carnal era abrangido, apenas a vida da alma dela, e de forma indireta de seu
marido-material, que repousaram ambos enfim na benesse da transformação. Tudo
havia mudado por ela, e a mudança de seu esposo era apenas parte do que mudara
em sua vida, pois no reconhecimento do mal que agia sobre ela, apenas o marido
era o agente. Parecia até que ela iria deixar o marido no curso de sua
história, mas ao final ela anunciava a confirmação do matrimônio, a união
refeita, o união sexual reafirmada.
A fé dela transformou sua condição de vida,
e o egocentrismo de suas palavras transcendia na deficiência de seu discurso
até o outro homem e assim toda sua familia, a sua gratidão era tamanha que ela
era o intrumento, o foco, a fonte, a luz de todo o bem daquele milagre que Deus
lhe concedeu.
O que ela não dizia, e que ninguém
geralmente conta, porque não compreende, é que seu mundo é igual ao de todos,
cristãos ou não, onde a pobreza (material e de espírito) não precisa dos
conceitos de fé para que a interpretem, que somos apenas parcos animais doentes
que buscam encontrar a felicidade e a paz que nossa animalidade latente, seja a
violência de um marido ou a fé cega e indiferente de uma esposa, tenta nos
distanciar. Afinal bem-aventurados são os pobres de espírito…
Essa não compreensão e opção pela explicação
fácil e parcial dos tramites da existência nunca conta que a relação das
pessoas com Deus sempre requereu esforço, e isso quer dizer que sempre há uma
contraposição do bem e do mal para se chegar até Ele.
Fiquei irriquieto por isso, pelo fato de as
pessoas não entenderem o desgastante jogo da vida que sempre requer o mal, o
erro e o pecado para se chegar a patamares mais elevados. A avenida iluminada
dos milagres divinos sempre passa pela escura trilha aberta pelos impulsos
naturais da animalidade humana.
Será que aquela mulher um dia chegou a
cogitar dentro de si, calada e sozinha, o quanto foi parte do trabalho do mal
do marido que colaborou com aquela beatitude que ela professava? Será que ela
seria a fiel que é sem o pecador que o outro foi?
Isso talvez nunca venha ao caso para ela, e
talvez para ninguém que tenha fé. A pergunta até poderia não ser procedente
diante de uma dimensão de fé e dogmas que tem em Jó seu ápice de expressão e
leitura consoladora em vieses de reparação ao final da estória biblica. Ali
mesmo em Jó só se fala do lado dele, que Deus deu em dobro e em triplo, etc.
tudo que Ele permitiu que Satanael Satã lhe tirasse, mas e a vida da mulher,
dos filhos, dos animais de Jó? Para as pessoas… quer dizer, para o Deus das
pessoas isso não tem importancia, tudo foi dado a mais, o que foi morto era a
parte do diabo mesmo!
Fiquei curioso em saber qual resposta a boca
daquela mulher proclamaria sobre essa questão, do mal que causa um bem. Ela
talvez me citaria a Bíblia ou clamaria a grandiosa sabedoria de Deus no caso?
Aquilo que não nos cabe julgar?
Para mim fica apenas a noção de uma
animalidade, de desconhecimento dos mecanismos verdadeiramente sábios de Deus,
representados em conceitos não-cristãos, de Karma (Compensação), demonizados
pelos evangélicos, e o de Maya (artificio da realidade), desconhecido por todos
os cristãos de uma forma geral.
Não quero aqui, via digital, também pregar
alto sobre o que eu acho, sobre minha própria dimensão espiritual. Deixo ao
leitor a escolha de refletir sobre sua própria existência incorporando esses
dois conceitos que compõem efetivamente a vida humana.
Não haveria nada sobre isso que eu pudesse
também dizer para aquela mulher, isso não mudaria em nada sua forma de pensar.
Alegra-me apenas saber que ela cumpre com firmeza seu caminho de evolução, o
que o Verdadeiro Deus traçou para cada um de nós, apesar das interferências
humanas dos ditos “representantes de Deus”,
que do alto dos altares, esses lugares que sempre serviram para decapitar
cabeças e arrancar corações em honra à todos os deuses, e de onde, nos dias de
hoje, as legiões pregam suas “teologias de prosperidade” e de “fé inteligente”,
mas que não são capazes e não podem, dentro de sua lógica interna, falar sobre
Maya e Karma para os que querem ter como fieis, ou escravos.
Disse “legião”,
sim, porque foi o que me lembrou o best-seller debaixo do braço daquela mulher
forte. O livro me remeteu imediatamente ao que uma vez li na “Filosofia Perene”
de Aldous Huxley, que “legião gosta de
ler sobre legião!”.
Assim, passa pelo processo histórico natural
de evolução decorrida na vida de toda a humanidade, de deixarmos finalmente os
preceitos que nos fazem ser legião, que fazem a todos nós o próprio Anti-Cristo
666, a matilha, o lobo do homem, que desconhece sistematicamente os verdadeiros
fundamentos da vida, da alma e do mundo, para nos tornarmos enfim seres humanos
conscientes, e a partir daí, alcançarmos a verdadeira divindade que Deus quis
compartilhar com cada um de nós.
Pois se legião significa sintonia, faixa de
vibração, creio que a mente que vibra na faixa dos milagres, nunca poderá
enxergar que o milagre é a própria existência! E a existência própria carrega
em si o rol de potencialidades que torna o ser humano como Deus. Lembram? “Sois
deuses!”, Ele mesmo disse!
Então, para longe de tudo isso, dessas
referências cruzadas, de toda essa carga de conceitos, pré-juízos e
constatações, procuro agora, distante e reflexivo dar a entonação toda para
esse caso, não para a pregação da forma como aquela mulher fez, não do meu
contra discurso submerso em suas analogia, mas somente a visão do mistério que
essa mulher engendrou em mim, mesmo não querendo inferir na questão toda minhas
próprias preocupações sexuais na história toda, mas já sem poder não fazer mais
isso.
Sim, confesso que me encabulara essa
dimensão não falada, não articulada e difícil de se acertar de fora, tão
distante como dois desconhecidos que somos.
Ali, no hospital, no lugar do corpo, na
aproximação da busca pela saúde física, da beleza céptica dos médicos, e no
contra erotismo dos corpos que convalescem, ainda o sexo fala onde tudo se
cala, esse velho e primordial problema humano, apenas Eros, sem Agape. O
mistério do “crescei e multiplicai-vos”
da própria boca de Deus…
Talvez porque as pessoas de fé
inquebrantável que mais me marcaram foram mulheres traídas e frustradas, viúvas
ou abandonadas, mulheres que não conheceram homens sadios o bastante para
realizarem juntas aos esposos os mistérios da câmara nupcial, mulheres que falharam
em sua disposição natural feminina de complemetarem-se e complementar o
representante masculino de suas vidas, seja o motivo que me ligou tanto àquela
mulher do hospital, na espera por um exame genecológico.
Para tudo isso, vem me esclarer a sincronia
que encontrei nas páginas do livro que ela me tirou a atenção de ler, e agora
repito a guisa de conclusão dessa minha reflexão:
“A
satisfação sexual libera o homem do seu mistério, que não está na sexualidade,
mas na satisfação desta, e talvez apenas nesta, não seja desfeita: cortada. É
comparável ao vínculo que une o homem à vida. A mulher corta-o, o homem se
torna livre para a morte, porque sua vida perdeu o mistério. Com isso ele
alcança um novo renascimento e como a amada o libera do feitiço da mãe, assim,
mais literalmente, a mulher o separa da mãe terra, é à obstreta a quem cabe
cortar o cordão umbilical que o mistério da natureza teceu.” – Walter Benjamin
(Agora meditem novamente sobre a condição do
marido daquela mulher sob a perspectiva desta citação reveladora. E se
quiserem, não poupem esse autor desta reflexão também, assim como qualquer
homem!).
***
Ajudou-me nessa reflexão o livro “O Aberto”,
de Giorgio Agambem, que eu estava lendo justamente nos momentos em que a minha
“irmã” começou seu testemunho, ali por volta da página 98 em diante. É dele que
tiro as citações de Foucalt e Benjamim.
“Misterium
Coniuctionis” da vida que insiste, apesar de nossa loucura natural, em nos
ensinar, curar e fazer evoluir.
Feliz Natal!?!?
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