Filosofia, como e onde surgiu? O que ela
significa? Para que serve? Essas são perguntas sobre as quais se debruçam
aqueles que pela primeira vez são iniciados no pensamento filosófico. Digo
“iniciados”, pois é isso que acontece com os que travam contato com esta
curiosa criação da mente humana, são introduzidos ao âmbito do pensamento puro,
aquele que visa buscar a causa primeira de todas as coisas.
Muitos dizem que a filosofia foi o “milagre” grego, querendo dizer que
ela surgiu sem causas, como se fosse um espírito divino que descesse do Olimpo
e possuísse o ser humano, mas isso é apenas uma lenda.
Tal milagre foi sim uma “grande novidade”, uma original invenção do
gênio grego, o qual pela primeira vez falou do termo “Filein to Sofon" (phileín
to sophón) e se pensou as definições do que quereria dizer a “Filosofia” (philosophia).
Porém, o que havia antes da Filosofia na Grécia e foi fundamental como a
base cultural e ambiente social para que
ela fosse inventada? Três fatores se
destacam.
Em primeiro lugar havia a religião das massas grega, chamada hoje por
nós de Mitos. Esses são uma tradição com narrativas que contam a estória da
origem do mundo e dos deuses, hinos e poemas fantásticos, e que legaram à
Filosofia seu sentido de harmonia, perfeição e imaginação.
Os mitos estão registrados nos poemas de Homero, a Odisseia e a Ilíada, e na
Teogonia de Hesíodo. Nessas narrações
são os deuses os responsáveis por tudo que acontece, eles dirigem a vida
humana, moldam seu destino e se encarregam de ter sua parte de diversão com
isto. O povo atribuía, pois, influenciado por esses relatos, que toda e
qualquer manifestação da natureza era regida pelos deuses e o ser humano um
simples ser animal mortal. Mas quem eram esses deuses?
“São - como há tempo se reconheceu
acertadamente – forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são
aspectos do homem sublimados, hipostasiados; são forças do homem cristalizadas
em belíssimas figuras. Em suma: os deuses da religião natural grega são homens
amplificados e idealizados; são, portanto, quantativamente superiores a nós,
mas qualitativamente diferentes...” (Reale, pg.21*).
Os deuses mitológicos, adorados em diversos templos e em cada casa de um
grego, tinham sua celebração máxima nas Olimpíadas, jogos realizados
periodicamente onde os campões eram finalmente alçados à altura de igualdade
com os Heróis e abençoados pelos Deuses, e eram venerados pelo povo como esses,
por suas façanhas.
Além dessa religião popular, para se entender de onde surgiu a
Filosofia, há de se prestar atenção à religião dos iniciados da Grécia, uma
elite espiritual que recebia seus ensinamentos transcendentais nos cultos chamados
Mistérios, cujo maior deles foi o da cidade de Elêusis. Os Mistérios, ou
Orfismo, pois foi fundado por pelo poeta, tocador de lira e cantor Orfeu, tinha
como doutrina as seguintes proposições:
a) No ser humano vive um princípio divino, um daimon (gênio, espírito),
caído e aprisionado no corpo por causa de uma culpa originária; b) Esse daimon
é imortal, não morrendo com o corpo, mas é destinado a reencarnar-se até
purificar suas culpas, c) Aqueles que são iniciados e vivem uma “vida órfica”,
depois da morte gozam a merecida libertação no além, enquanto para os
não-iniciados há uma punição.
Com o Orfismo aparece pela primeira vez uma concepção dualista de alma
(daimon) e corpo (lugar de expiação), assim o homem toma noção pela primeira
vez que em si coabitam e lutam dois princípios, um bom e outro mau, e vê que
nem todas suas tendências são boas e que algumas precisam ser reprimidas ou
disciplinadas. Com os Mistérios se dá ao ser humano pela primeira vez a ideia
de que há algo divino e imortal em todos nós.
Tal concepção, tendo influência na mente dos gregos começa a fazê-los se
distanciar de uma visão da vida pelas premissas dos Mitos e dos heróis
homéricos, onde suas virtudes divinas deixam de ser a verdadeira virtude, e o
próprio ser humano ganha sua parcela de divindade e imortalidade, sua alma.
O terceiro e último ponto mais influente para a invenção da Filosofia
foi a própria formatação da sociedade grega, mais precisamente a Liberdade
usufruída dentro dela, liberdade política, social, econômica e religiosa.
O que o grego sentia em relação à sua cidade, a Pólis, era uma relação de plena identidade. Nela, os cidadãos
livres podiam definir os rumos de sua própria sociedade, assim se organizavam e
se sentiam parte do todo, havia uma verdadeira ‘República’ (= coisa pública) na
organização política das cidades. Socialmente e economicamente, o período da
invenção da Filosofia foi uma época de prosperidade para os padrões do mundo
antigo, o comércio, as navegações e a agricultura sustentaram o grego, que não
era muito afeito às tecnologias, em um modo de vida que permitiu que ele
tivesse momentos de ócio puro, condição necessária para se desenvolver a
Filosofia. E religiosamente esse povo teve a sorte histórica, “graças aos
deuses”, de não possuírem um livro sagrado, assim não havia um clero parasita
instalado à custa do povo, seus sacerdotes eram pessoas que sentiam-se com o
destino de oficiar cerimônias, seus religiosos eram os Aedos, poetas e cantores que se apresentavam nas Ágoras (praças públicas) e nos teatros,
nesse clima que chamaríamos “cultural” se desenvolvia também a espiritualidade
das massas.
Desse ambiente cultural surgiu a Filosofia. Mas o que é isso, Filosofia?
O termo Filosofia, dizem, foi inventado por Pitágoras, que por ser um
místico, via na deusa Sophia o princípio e final de toda Sapiência (Sabedoria).
Pensava ele que a sabedoria plena só podia ser de posse da divindade, e ao ser humano
cabia apenas ir se aproximando dessa sabedoria, ou seja, se apaixonar pelo
saber, a qual nunca poderia ter totalmente. Mesmo nunca nos satisfazendo de
saber, cabe-nos “amar a sapiência”.
Disso veio “Philo Sophia =
amor, ou amizade, pela sabedoria”, e veio também o “Sóphos = sábio, seduzido” justamente pela Sapiência, a Fiel Sophia.
Mas então, o que é propriamente essa a Filosofia? Ela se definiu logo no
início por ter um conteúdo, um método e um escopo (um alvo, uma finalidade):
-Conteúdo da Filosofia: Tudo. A Filosofia quer explicar a
totalidade das coisas, ou seja, toda a realidade, sem exclusão de partes ou
momentos dela, distinguindo-se assim estruturalmente das ciências particulares
(Física, Matemática, Geometria, Astronomia, etc.). Enquanto as ciências particulares
se limitam a estudar fenômenos restritos ao seu saber, a Filosofia se pergunta
sobre o princípio de todas as coisas.
-Método filosófico: Razão. A Filosofia quer ser explicação
puramente racional da totalidade que é seu objeto. O que vale em Filosofia é o
argumento de razão, a motivação lógica: é, numa palavra, o logos (substância ou causa do mundo). Não basta à Filosofia
constatar, verificar dados de fatos, coletar experiências: a Filosofia deve ir
além dos fatos e das experiências para encontrar suas razões, a causa, o
princípio.
-Escopo da Filosofia: Teoria. Como escreveu Aristóteles, que
melhor definiu o objetivo da Filosofia, “seu
caráter é puramente teórico, ou seja, contemplativo: ela visa simplesmente à
busca da verdade por si mesma, prescindindo de suas utilizações práticas”,
isso cabe às demais ciências. A Filosofia é livre enquanto não se submete a
qualquer utilização pragmática, resumindo-se em pura contemplação da verdade,
fazendo jus ao sentido de seu nome, amor ao saber por si mesmo, amor
desinteressado ao verdadeiro.
A Filosofia é então um saber puramente teórico, uma contemplação de si
mesma, um saber pelo saber. É o êxtase da mente mediante saber a causa das
coisas!
Para que serve Filosofia então? Quem melhor define é também Aristóteles,
O Filósofo:
“... Assim, se os homens filosofaram para
libertar-se da ignorância, é evidente que buscaram o conhecimento só com
a finalidade de saber e não para alcançar alguma utilidade prática. E o
próprio modo segundo o qual as coisas se desenvolveram o demonstra: quando já
se possuía praticamente tudo o que era necessário para a vida e também para a
prosperidade e para o bem estar, então se começou a buscar aquela forma de
conhecimento. É evidente, portanto, que nós não a buscamos por nenhuma vantagem
que lhe seja estranha; e, antes, é evidente que, como chamamos livre o homem
que é fim para si mesmo e não serve a outros, assim, só ela, entre todas as
outras ciências, chamamos livre; só ela, de fato é fim para si mesma” (in
“Metafísica” de Aristóteles).
Como costuma se dizer que o Tudo se equivale ao Nada, assim o objetivo
da Filosofia é o Nada também, donde dizem que filosofia “serve para nada”, provando
sua liberdade indagadora. Daí as maiores questões pensadas pela Filosofia serem
justamente “o que é o logos, o Ser?”, “qual é a causa primordial da
realidade?”, “por que existe algo ao invés de nada?”, “de onde vem a
Liberdade?”, “qual é o viver correto?”, etc. Todas essas questões fundamentais
revelam o processo de admiração, espanto, ao qual estavam submetidos os
primeiros seres humanos que pensaram filosoficamente, a força do pensamento que
engendraram durante um período de mil anos (de aproximadamente 650 a.C até 350
d.C) e que serviu de substrato para se desenvolver todas as teorias humanas até
os dias de hoje, o que ainda chamamos de Filosofia pelo seu débito àqueles
pensadores originais.
Portanto, também nisso os gregos foram e continuam sendo mestres: só se
é filósofo se e enquanto se é totalmente livre, ou seja, só se, e enquanto, com
absoluta liberdade, se contempla ou se busca o verdadeiro como tal, sem
ulteriores razões determinantes, e aquilo que se consegue como efeito prático
da verdade encontrada e contemplada já está essencialmente fora do momento mais
propriamente filosófico.
E nos dias de hoje, mediante o fato de Filosofia ser uma espécie de
saber quase esquecido, limitado aos corredores e salas das Universidades, onde
ganhou a alcunha de uma ciência dentre as outras, percebemos um grande
afastamento das pessoas comuns do pensar filosófico. Filosofia se tornou
sinônimo de estilo de vida, confundida com as ideologias distribuídas nas ruas
como mais uma mercadoria.
Assistimos a sedução de outros fatores e não mais da Sabedoria, tendo
agora o filósofo e os educadores de um modo em geral que disputarem espaço com
os aparelhos tecnológicos, os meios de entretenimento, as drogas e o álcool, e
uma necessidade cada vez mais inquietante de sobrevivência econômica que assola
a sociedade.
Trava-se em nosso mundo uma titanomaquia
(uma luta de gigantes) donde a Filosofia é o menor deles, justamente por suas
características teóricas e não práticas, afinal, para que se importar com saber
quando há toda a disponibilidade de informação ao alcance de um toque na tela
de um celular? Para que se preocupar com a disciplina e a condução da reforma
interior quando o que dá status hoje em dia é o proceder narcisista que é
imposto à juventude na luta pueril pelo carro mais bacana, os cabelos mais
sedosos e a roupa mais cara?
Transitar no meio disso tudo ainda é papel da Filosofia e da educação
decorrente dela. Incansavelmente ela faz reverberar a antiga verdade da atuação
dessa sabedoria, que Filosofia não transforma as coisas e o mundo, ela
transforma quem pensa com ela!
Que seja isso que falte em nosso mundo, que não obstante todo o
desenvolvimento científico, ainda toda essa maravilhosa parafernália
tecnológica não foi capaz de tirar o ser humano de sua pré-história espiritual.
Só cabe aos professores e aos estudantes de Filosofia lembrar sempre que
“Educar” quer dizer “tirar de dentro à força”, no sentido de fazer vir à luz, sair de
dentro da caverna em que naturalmente nascemos, e nos apaixonarmos mais uma vez
pela Sabedoria.
* REALE, Giovanni. História
da Filosofia Grega e Romana – Vol. I: Pré-Socráticos e Orfismo. Ed.
Loyola, São Paulo, 2009.