[este é um texto, para aceitar a vida assim,
o último que escrevo, para
afirmar enfim,
minha
vida sem você!]
(Escrevo para todos & para ninguém essas
reflexões, escrevo para uma só... mas tais palavras vêm da noite escura em que
decidi não mais querer o que não tenho, & nem o que poderia ter, mas para
tentar amar apenas aquilo que agora tenho & sou...)
Me ponho a pensar sobre a possibilidade do “amor fati”, e o que isso
realmente implica. Na disposição inerente a uma vida comum, quando o grande
leque do passado está aberto e o futuro é uma névoa escura diante de si,
justamente por conta do passado, o clamor ao amor fati vem com um tom
estarrecedor...
Porque amar o fado, da forma como Nietzsche nos convocou é realmente
difícil. Talvez só ele, dentre toda a humanidade fosse capaz disso, pois ele
era Nietzsche!
Mas entrementes, já ouvi da boca de muitas pessoas, pessoas comuns, como
eu, como você, a declaração de que gostariam de viver a mesma vida, “sem tirar nem por!”. Observei nessas
pessoas, não apenas a marca da inconsequência de talvez não estarem sabendo o
que dizem, mas também uma perceptível alegria em alguns casos, mas aquela
alegria da ignorância que faz feliz. Mas também em alguns, uma coragem
irrefutável, um amor ao que são, que só a vida com sofrimentos pode dar.
O que é o “Amor Fati”? É essencialmente não querer nada de diferente, é
também afirmação do que se tem, é desejar, sinceramente, que todo o seu fado se
repita, exatamente igual... em outra vida, exatamente igual!
No palco da Tragédia humana, devemos mergulhar nesse sentimento
desvencilhando sua real afeição. Amor Fati para os nobres é aquele sentimento
que se diferencia dos diversos tipos de “amores” que podemos sentir. Há, pois o
“Amor Eros”, a paixão arrebatadora, violenta, erótica; há o “Amor Ágape”,
aquela dó ou compaixão que sentimos pelas pessoas, no reconhecimento de nossa
dignidade humana recíproca; existi o “Amor Philos”, que é o “Amor de Si”, que
deseja e ama somente o belo e o bem que há nas coisas; existe também um “Amor
Platônico” que comporta até suas dores de amor platônicas, idealistas; há o
“Amor Amigo”, que advém de tal virtude, como Aristóteles asseverou; podemos
ainda falar sobre um amor egoísta, onde o ciúme é operante; assim como existe
um amor de responsabilidade que nossos impulsos biológicos, de secreções
impõe-nos; como ainda um amor pelos animais e pela vida, que podemos chamar de
paixão inocente...
O Amor Fati deve se diferenciar de todos esses amores, apesar de em
algum ponto poder assimilar cada um desses sentimentos, mas não imperando
nenhum. Amor Fati é o amor da águia, aquele amor por si mesmo, na solidão dos
altos vôos, cheio de uma coragem que aproxima-se ao ódio por si, pois deve
carregar indelevelmente a marca da afeição pela derrota pessoal também, de
saber-se provisório para outra coisa maior que si mesmo. Ele não ruma à outra
pessoa, seja homem, mulher ou animal, seja situação, objeto ou momento, ele
despreza a compaixão, pois não quer a dependência ou a fraqueza alheia, não
quer nada de alheio a si, não pode amar só o belo ou o bem ou o bom, mas também
o feio, o mal e o ruim, apesar dessas coisas não presentificarem-se ao se ter
“amor fati”, não é idealista a não ser pelo fato de a idéia dever ser, e o
não-ser estar sempre jogado na região do abismo aberto das feridas que também
se ama, carrega traços marcantes de um amor virtuoso, enquanto apoteose do
momento, que se afirma nas pernas tremular, mas adoradas do funambulador que
entreve a queda enquanto se equilibra na corda bamba que é a vida, e de tudo
mais se desvencilha, naturalmente, seja bens materiais, sejam seres vivos
inferiores, esses motivos costumeiros de afetações e compensações.
Vejo as linhas do “Amor Fati” sobrepostas naquela “bioética” que Hans Jonas
dispõem, em seu “Princípio Vida”, a liberdade que só pode emanar da própria
vida, enquanto estar lançado na absurda fragilidade do viver biológico, onde
surge uma liberdade imponderável, que eu diria, nietzschiana, aquela liberdade
de mão sujas, maculadas pelo barro da existência carnal, com suor e sangue da
vontade de poder. A nobreza que há nisso é apenas a consciência de si, e isso o
amor fati tem bastante, e talvez seja isso que mais importa nele.
“Nosce te Ipsum”, pois não há amor fati que não conheça a si mesmo, é
fato imprescindível no amor fati saber o que se ama em si mesmo. Por isso creio
que aqueles que comumente dizem “não
querer nada diferente”, quando dizem isso entremente à alegria, nas festas,
ou sem pensar, diante da vida, não sabem o que estão dizendo, pois ainda fala
forte a sentença de Sileno que para o ser humano o melhor é nunca ter existido.
Devemos, pois, para conceber o amor fati corretamente, pensá-lo dentro
do âmbito da tragédia, onde mais do que nossos acertos, nossos erros determinam
a proveniência daquilo que devemos amar sinceramente. A alegria e a boa sorte
trazem elementos facilmente amáveis, e engana o ser humano na hora de afirmar
sua existência, enquanto que a dor e a má sorte põem-nos em atenção para o que
está diante de nós, é dali que temos que retirar, como garimpeiros, a pepita de
nossa grandeza.
Tal coisa tão pequena e de extremo valor revela em sua substância não
mais o valor alheio, o dever ser, a benção da sorte ou de Deus, mas comporta a
potência do reconhecimento, da afirmação pessoal, do abençoar livre pela
própria boca, da sorte/morte individual, perante somente si mesmo.
Ela comporta aquela fraqueza/forte, aquela imensidão no ínfimo, aquele
terror desejável, coisas com as quais o ser humano não está acostumado e
geralmente não quer, não compreende, não busca ou sequer percebe quando
encontra, caso esteja disposto apenas diante da alegria, da luz, da boa
sorte...
O amor fati não pode ser em momento nenhum uma desculpa para a
infelicidade, não pode ser uma compensação psicológica para nenhuma dor,
nenhuma culpa. O amor fati não pode ser retardo para um devir, uma vingança,
uma ilusória sensação de superioridade. Como eu disse, é o amor da ave de rapina,
é a condição biológica para se digerir lá no alto a carniça que se ingere na
vida, nutrição das carcaças dos mortos, dos ossos dos massacres que a
cotidianidade nos impõe, sendo isso sempre consciente.
Se pudesse, se suas forças permitissem, a águia voaria até o Sol, e se o
ar lhe faltasse, ela respiraria o nada que também sustentaria seu vôo. Se suas
asas fossem loucas, como só pensamento sabe ser, a águia dançaria pelas
estrelas, em passos improvisados nunca antes pensados, e tocaria de lado a lado
os precipícios que arregimentam o abismo, fazendo dele sob medida para sua
envergadura, sua autonomia seria do tamanho de sua coragem, e a coragem da
águia é aquilina; mas ela não quer nada disso... ela só quer o que tem, e só
tem o que quer!
A águia é uma estrela com órbita própria, assim devem ser aqueles com Amor
Fati.
Uberlândia,
Verão de 2015.
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