8 de jun. de 2015

Em Busca de um Humanismo



“A essência do ser-aí reside em sua existência”
(M. Heidegger, Ser e Tempo p.42).

      “A existência precede a essência”(J-P. Sartre,
 O Existencialismo é um Humanismo p. 11).


   Se chegamos demasiado tarde para os deuses e demasiado cedo para o Ser, então podemos dizer que nós, humanos, somos seres que estamos, no mínimo, entre um paradoxo da existência e do pensamento, o qual nos cabe resolver.

    Essência e existência, pensamento e ação: eis clareiras humanas, para onde as sendas do tempo e do nada nos conduzem com a ajuda da “bússola” do Ser.

    Nessa abertura, a realidade com a qual nos deparamos, uma questão é proposta, ela não é a questão essencial (a questão do ser), mas nos fala muito sobre tal reflexão, essa é a questão do Humanismo.

   Martin Heidegger (1889-1976) nos chama a atenção para tal questão ao buscar pelo sentido original do Ser, nos esclarecendo que toda a história da Filosofia de Platão até hoje, é na verdade a história do encobrimento do ser.

   Quer o filósofo alemão nos guiar de volta às questões do Pensar, da Linguagem, da Morte, da Poesia, do Ser ...

   Jean-Paul Sartre (1905-1980) por sua vez tem preocupações mais práticas, engaja-se em uma práxis pelo sentido e suportabilidade da existência humana e os rumos que o indivíduo dá a ela. Quer ele dar ênfase ao ente-com-os-outros.

   O filósofo francês, além de querer dar um sentido ético ao existencialismo, nos conduz às questões da Ação, da Liberdade, da Responsabilidade, do Ente humano...

   E o Humanismo?

   Heidegger quer se por fora da História da Filosofia para nela denunciar o “encobrimento do ser”. Sartre parece não se preocupar com tal questão e se entranha no ser humano para tentar revelar seus fundamentos existenciais.

   Heidegger diz que existência e essência atuam ao mesmo tempo para definir o modo de ser do ser-aí. Já Sartre declara que existir é fator a priori de qualquer essência.

   A questão do humanismo, porém, se entremeia nessas paragens de forma dissimulada, mas se prestarmos atenção ao cerne do conceito de humanismo, veremos que tanto a posição de Heidegger quanto a de Sartre sobre a situação do ente, mas bem dizer, do homem, influenciam também sua posição final a respeito do humanismo.

   O humanismo para Heidegger é um desses conceitos que expressam claramente o encobrimento do ser, pois põe o homem como o centro das questões em detrimento do Ser, o qual deveria ser, ele sim, a medida (ou rumo) para todas as coisas.

   Sartre declara sua filosofia existencialista como uma forma de humanismo, a qual torna possível a vida humana, pois o homem não é nada mais além do que ele faz de si-próprio, ele quer uma doutrina que possa dar liberdade total ao homem.
  
   Para Heidegger (e o que é tácito mesmo), o humanismo é uma ideia relativa ao tempo e ao lugar onde os homens o pensam. O humanismo de Sartre é filho de seu tempo e vivência, filho de uma tremenda desilusão pós-guerra onde, asfixiados, homens de bem querem dar novos rumos à existência humana, como que se sentissem abandonados por Deus (ou pelo Ser).

   Mas sobreviveria a noção corrente de humanismo ao “atemporal filosófico-histórico”, lá onde se deixa que o Ser seja? Ao antes da Filosofia e o consequente encobrimento do Ser?

   Na carta “Sobre o ‘Humanismo’”[1] Heidegger como que propõe tal “exercício” ao introduzir a narrativa sobre Heráclito (-500 a.C.), voltando à origem do pensamento antes de sua corrupção.

   Remete-nos ao fragmento B 119: “etos antrwto daimon”, o qual uma versão moderna traduz como “o modo próprio de ser é para o homem o demônio”[2].



   Heidegger focaliza-se sobre o termo etos (ethos – o qual hoje teria o sentido de ética), originalmente significando “habitação do homem”.

   O filósofo alemão remete-se a isso para complementar a explicitação de outra passagem de Heráclito que é narrada por Aristóteles [3] onde o principal é o dito final. O caso é o seguinte: Heráclito foi visto por curiosos se aquecendo junto ao fogão, ele vendo a decepção dos visitantes, os estimulou a se aproximarem dizendo: “Pois também aqui estão presentes deuses...”.

   O sentido desse dito é que em lugar tão banal quanto uma cozinha, lá onde cada agir e pensar é também banal e familiar, na cotidianidade e simplicidade de se aquecer ou assar o pão, nisto tudo os deuses também estão presentes, ali o Ser também fala ao homem.

   Nós, homens da maturidade da era atômica, chegamos tarde para esses deuses, mas persistimos no humano habitar, por mais que os tempos e a tecnologia incrementem nossos lares e nosso cotidiano inteiro, dispomos nossas vidas em rumos que nem mesmo sabemos onde darão (sendas que levam a lugar nenhum?!), porém sob a luz da atitude de Heráclito e seu sentido de eqos/habitar, a existência pode tomar rumos autênticos e o lugar do homem estabelecido em bases diferentes.

   Sob a luz do atemporal o humanismo deixaria de ser uma doutrina do homem pelo (e para) o homem. Etos antrwpo daimon, diz o próprio Heráclito: ‘A habitação (familiar) é para o homem o aberto para a presentificação do Deus (o não-familiar)’”[4], essa a tradução de Heidegger.

   Que o humanismo não seja a habitação para mais um erro, vindo a tornar-se puro humanitarismo ou um assistencialismo psicológico relativista, o humanismo assim abre o homem para o advento e presentificação... do homem!

   Para Heidegger já é hora de se ser “simples”, e nisto reside a chave para se saber que não se é mais demasiado cedo, mas que o Ser (“...deste o homem é poema...”[5]) já está presente aqui, junto ao ser-aí, seu Pastor.

   Há de se pensar o “humanismo” então como o pensamento que nos abra não para o homem somente ou o homem como medida do Ser, mas para o pensar no qual se propicia  habitar no homem o Ser, (re)inaugurando uma nova relação humana.

    Este pensar não é a Filosofia ou a Metafísica, não é também um saber absoluto. Seria esse novo pensar a Poesia? Seria esse pensamento um caminho em que estar-a-caminho seria a verdade, como diria o professor Emmanuel Carneiro Leão: “existência humana é viagem que o homem faz entre realidade e realização”.

    Este “pensar está na descida para a pobreza de sua essência precursora” [6], tal pensar, se correto, leva o homem a participar autenticamente dos acontecimentos e não a ser o centro-dos-acontecimentos; ator principal, talvez sim, mas não o escritor da peça onde se encena, entre quatro paredes ou pelo caminho do campo, a tragédia da existência e do nosso destino historial, nossa saga onde o Ser simplesmente é, e que aí o homem possa ec-sistir.

    Para concluir este pequeno ensaio não podemos deixar de apresentar o que Heidegger definiria como “termo substituto” para Humanismo; pois, se para Sartre o Existencialismo é um humanismo, para Heidegger o humanismo é apenas uma porta para introduzir o pensamento no âmbito da Analítica Existencial.

    No sentido do estar-a-caminho, Heidegger propõe que esse humanismo seja humanitas, um pensamento nem teórico nem prático. Essa humanitas é ec-sistência pois agora ela pertence ao Ser, é nela que o ser humano se torna esse habitar no qual o pensar que é advindo do Ser permite construir seu lugar original no mundo.
   



Notas:
[1]- In “Heidegger – Col. Os Pensadores” pp. 148 a 175.
[2]- Uma curiosidade:Tal tradução nos remete à afirmativa de J-P. Sartre de que “o inferno são os outro”,
       e mais toda a especulação do texto “Entre Quatro Paredes”.               
[3]- Ver “Sobre o ‘Humanismo’” pp. 170 e ss.
[4]- In “Sobre o ‘Humanismo’” p. 171.
[5]- In “Da Experiência do Pensar” de M. Heidegger, 1947.
[6]- In “Sobre o ‘Humanismo’” p. 175.



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