“A essência do ser-aí reside em
sua existência”
(M. Heidegger, Ser e Tempo p.42).
“A existência precede a essência”(J-P. Sartre,
O Existencialismo é um Humanismo
p. 11).
Se chegamos demasiado tarde para os deuses e demasiado cedo para o Ser,
então podemos dizer que nós, humanos, somos seres que estamos, no mínimo, entre
um paradoxo da existência e do pensamento, o qual nos cabe resolver.
Essência e existência, pensamento e ação:
eis clareiras humanas, para onde as sendas do tempo e do nada nos conduzem com
a ajuda da “bússola” do Ser.
Nessa abertura, a realidade com a qual nos
deparamos, uma questão é proposta, ela não é a questão essencial (a questão do
ser), mas nos fala muito sobre tal reflexão, essa é a questão do Humanismo.
Martin Heidegger (1889-1976)
nos chama a atenção para tal questão ao buscar pelo sentido original do Ser,
nos esclarecendo que toda a história da Filosofia de Platão até hoje, é na
verdade a história do encobrimento do ser.
Quer o filósofo alemão nos guiar de volta às questões do Pensar, da
Linguagem, da Morte, da Poesia, do Ser ...
Jean-Paul Sartre (1905-1980)
por sua vez tem preocupações mais práticas, engaja-se em uma práxis pelo
sentido e suportabilidade da existência humana e os rumos que o indivíduo dá a
ela. Quer ele dar ênfase ao ente-com-os-outros.
O filósofo francês, além de querer dar um sentido ético ao
existencialismo, nos conduz às questões da Ação, da Liberdade, da Responsabilidade,
do Ente humano...
E o Humanismo?
Heidegger quer se por fora da História da Filosofia para nela denunciar
o “encobrimento do ser”. Sartre parece não se preocupar com tal questão e se
entranha no ser humano para tentar revelar seus fundamentos existenciais.
Heidegger diz que existência e essência atuam ao mesmo tempo para
definir o modo de ser do ser-aí. Já
Sartre declara que existir é fator a priori de qualquer essência.
A questão do humanismo, porém, se entremeia nessas paragens de forma
dissimulada, mas se prestarmos atenção ao cerne do conceito de humanismo,
veremos que tanto a posição de Heidegger quanto a de Sartre sobre a situação do
ente, mas bem dizer, do homem, influenciam também sua posição final a respeito
do humanismo.
O humanismo para Heidegger é um desses conceitos que expressam
claramente o encobrimento do ser, pois põe o homem como o centro das questões
em detrimento do Ser, o qual deveria ser, ele sim, a medida (ou rumo) para
todas as coisas.
Sartre declara sua filosofia existencialista como uma forma de
humanismo, a qual torna possível a vida humana, pois o homem não é nada mais
além do que ele faz de si-próprio, ele quer uma doutrina que possa dar
liberdade total ao homem.
Para Heidegger (e o que é tácito mesmo), o humanismo é uma ideia
relativa ao tempo e ao lugar onde os homens o pensam. O humanismo de Sartre é
filho de seu tempo e vivência, filho de uma tremenda desilusão pós-guerra onde,
asfixiados, homens de bem querem dar novos rumos à existência humana, como que
se sentissem abandonados por Deus (ou pelo Ser).
Mas sobreviveria a noção corrente de humanismo ao “atemporal
filosófico-histórico”, lá onde se deixa que o Ser seja? Ao antes da Filosofia e o consequente encobrimento do Ser?
Na carta “Sobre o ‘Humanismo’”[1] Heidegger como que propõe tal
“exercício” ao introduzir a narrativa sobre Heráclito (-500 a.C.),
voltando à origem do pensamento antes de sua corrupção.
Remete-nos ao fragmento B 119: “etos antrwto daimon”, o qual uma versão
moderna traduz como “o modo próprio de
ser é para o homem o demônio”[2].
Heidegger focaliza-se sobre o termo etos (ethos – o qual hoje teria o sentido
de ética), originalmente significando
“habitação do homem”.
O filósofo alemão remete-se a isso para complementar a explicitação de
outra passagem de Heráclito que é narrada por Aristóteles [3] onde o principal
é o dito final. O caso é o seguinte: Heráclito foi visto por curiosos se
aquecendo junto ao fogão, ele vendo a decepção dos visitantes, os estimulou a
se aproximarem dizendo: “Pois também
aqui estão presentes deuses...”.
O sentido desse dito é que em lugar tão banal quanto uma cozinha, lá
onde cada agir e pensar é também banal e familiar, na cotidianidade e
simplicidade de se aquecer ou assar o pão, nisto tudo os deuses também estão
presentes, ali o Ser também fala ao homem.
Nós, homens da maturidade da era atômica, chegamos tarde para esses
deuses, mas persistimos no humano habitar, por mais que os tempos e a
tecnologia incrementem nossos lares e nosso cotidiano inteiro, dispomos nossas
vidas em rumos que nem mesmo sabemos onde darão (sendas que levam a lugar
nenhum?!), porém sob a luz da atitude de Heráclito e seu sentido de eqos/habitar, a existência pode tomar rumos
autênticos e o lugar do homem estabelecido em bases diferentes.
Sob a luz do atemporal o humanismo deixaria de ser uma doutrina do homem
pelo (e para) o homem. “Etos
antrwpo daimon, diz o próprio Heráclito: ‘A habitação (familiar) é para o homem o aberto para a
presentificação do Deus (o não-familiar)’”[4], essa a tradução de
Heidegger.
Que o humanismo não seja a habitação para mais um erro, vindo a
tornar-se puro humanitarismo ou um assistencialismo psicológico relativista, o
humanismo assim abre o homem para o advento e presentificação... do homem!
Para Heidegger já é hora de se ser “simples”,
e nisto reside a chave para se saber que não se é mais demasiado cedo, mas que
o Ser (“...deste o homem é
poema...”[5]) já está presente aqui, junto ao ser-aí, seu Pastor.
Há de se pensar o “humanismo” então como o pensamento que nos abra não
para o homem somente ou o homem como medida do Ser, mas para o pensar no qual se propicia habitar
no homem o Ser, (re)inaugurando uma nova relação humana.
Este pensar não é a Filosofia ou a
Metafísica, não é também um saber absoluto. Seria esse novo pensar a Poesia?
Seria esse pensamento um caminho em que estar-a-caminho seria a verdade, como diria o professor Emmanuel Carneiro Leão:
“existência humana é viagem que o homem faz entre realidade e realização”.
Este “pensar está na descida para a pobreza
de sua essência precursora” [6], tal pensar, se correto, leva o homem a participar autenticamente dos acontecimentos e não a ser o centro-dos-acontecimentos; ator principal, talvez sim,
mas não o escritor da peça onde se encena, entre quatro paredes ou pelo caminho
do campo, a tragédia da existência e do nosso destino historial, nossa saga onde
o Ser
simplesmente é, e que aí o homem possa ec-sistir.
Para concluir este pequeno ensaio não
podemos deixar de apresentar o que Heidegger definiria como “termo substituto”
para Humanismo; pois, se para Sartre o Existencialismo
é um humanismo, para Heidegger o humanismo é apenas uma porta para introduzir o
pensamento no âmbito da Analítica Existencial.
No sentido do estar-a-caminho, Heidegger propõe que
esse humanismo seja humanitas, um pensamento nem teórico nem prático. Essa humanitas é ec-sistência pois agora ela
pertence ao Ser, é nela que o ser humano se torna esse habitar no qual o pensar
que é advindo do Ser permite construir
seu lugar original no mundo.
Notas:
[1]- In “Heidegger – Col. Os
Pensadores” pp. 148 a
175.
[2]- Uma curiosidade:Tal
tradução nos remete à afirmativa de J-P. Sartre de que “o inferno são os
outro”,
e mais toda a especulação do texto
“Entre Quatro Paredes”.
[3]- Ver “Sobre o
‘Humanismo’” pp. 170 e ss.
[4]- In “Sobre o ‘Humanismo’”
p. 171.
[5]- In “Da Experiência do
Pensar” de M. Heidegger, 1947.
[6]- In “Sobre o ‘Humanismo’”
p. 175.
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