12 de set. de 2009

[O homem-árvore] - Antonin Artaud


(Carta a Pierre Loeb)
Ivry, 23 de Abril de 1947



O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,mas de vontade e árvore de vontade que anda, voltará. Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo, ingestão,assimilação, incubação, excreção, o que existia criou toda uma ordem de funçõeslatentes e que escapam ao domínio da vontade decisora, a vontade que em cadainstante decide de si; porque assim era a árvore humana que anda, uma vontade que decide a cada instante de si, sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.
Do que somos e queremos na verdade pouco resta, um pó ínfimo sobrenada, e oresto, Pierre Loeb, o que é?
Um organismo de engolir, pesado na sua carne, e que defeca,e em cujo campo, como um irisado distante, um arco-íris de reconciliação com deus, sobrenadam, nadam os átomos perdidos, as ideias, acidentes e acasos no total de um corpo inteiro.
Quem foi Baudelaire?Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?
Corpos que comeram, digeriram, dormiram, ressonaram uma vez por noite, cagaram entre 25 e 30 000 vezes, e em face de 30 ou 40 000 refeições, 40 mil sonos, 40 mil roncos, 40 mil bocas acres e azedas ao despertar, tem cada qual de apresentar 50 poemas, o que realmente não é de mais, e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática está muito longe de ser mantido, está todo ele desfeito, mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.
Nós somos 50 poemas, o resto não somos nós mas o nada que nos veste,se ri para começar de nós, vive de nós a seguir.
Ora este nada nada é, não é qualquer coisa mas alguns.
Quero dizer alguns homens.
Animais sem vontade nem pensamento próprio, ou seja sem dor própria, que emsi não aceitam vontade de uma dor própria e para forma de viver mais não encontram que falsificar a humanidade.
E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos, fizeram este alambique de merda, esta barrica de destilação fecal, causa de peste e de todas as doenças e deste lado de híbrida fraqueza, de tara congénita, que caracteriza o homem nato.
Um dia o homem era virulento, só era nervos eléctricos, chamas de um fósforoperpetuamente aceso, mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram, osanimais, essas deficiências de um magnetismo inato, essa cova de oco entre dois folesde força que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa, e a vida mágica do homem caiu, o homem caiu do seu rochedo com íman e a inspiração que era o fundo passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência, talvez excelência mas à frente de um tal acervo de horrores, que mais valia nunca ter nascido.
Não era o estado de paraíso, era o estado-manobra, - operário, o trabalho semrebarbas, sem perdas, numa indescritível raridade.
Mas esse estado por que não continuou?Pelas razões que levam o organismo de animal, que foi feito para e por animais e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir. Exactamente pelas mesmas razões.
Mais fatais umas do que outras. Mais fatal a explosão do organismo dos animais que a do trabalho único no esforço dessa vontade única e muito impossível de encontrar.Porque realmente o homem-árvore, o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade, esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro, a capa ilusória do outro, prosseguiu na sua vontade mas oculta, sem compromissos nem contacto com o outro.
E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo mas logo depois com muita força,estilo bomba, irá revelar a sua inanidade. Porque devia criar-se um crivo entre o primeiro dos homens-árvores e os outros, mas aos outros foi preciso o tempo, séculos de tempo para os homens que tinham começado ganharem o seu corpo como aquele que não começou e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio, e não havia lá ninguém,
e lá não havia começo.
E então?
Então.
Então as deficiências nasceram entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada. Em breve esse trabalho será concluído. E a carapaça terá de ceder. A carapaça do mundo presente.
Levantada sobre as mutilações digestivas de um corpo esquartelado em dez mil guerras e pela dor, e a doença, e a miséria, e a penúria de géneros, objectos e substâncias de primeira necessidade.
Os que sustentam a ordem do lucro das instituições sociais e burguesas, que nunca trabalharam mas grão a grão amealharam o bem roubado desde há biliões de anos e conservado em certas cavernas de forças defendidas pela humanidade inteira, com algumas tantas excepções vão ver-se obrigados a gastar as energias nessa coisa que é combater, vão lá poder deixar de combater, pois no fim da guerra e esta agora apocalíptica, que há-de vir, está a sua cremação eterna.Por isto mesmo eu julgo que o conflito entre a América e a Rússia, reforçado eleseja a bombas atómicas, pouco vai ser ao lado e em face do outro conflito que vairepentinamente estalar entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado, e por outro o homem de vontade pura e os seus muito raros aderentes e sequazes mas com a sempiterna força por si.

Tradução de Aníbal Fernandes

'Tree Cult' - A.O.Spare

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