17 de jan. de 2015

A Cessação de todo Pensamento Racional



“Os tigres da ira sabem mais
do que os camelos da cultura”
Blake

- Gnose, Arte & Vida

   Quando a mente é deixada livre, sem o controle consciente do pensamento, sem a influência do pensamento lógico ou especulativo, ela então começa a trabalhar sem amarras condicionadas e proporciona ao indivíduo um desfile rápido e contínuo de um material mental diferenciado do comum, pensamentos puros advindos como ecos visuais e imprevistos vindo do fundo da mente, coisa que poderíamos chamar justamente de “imprevisão”.

   Desse tipo de experiência muitos artistas retiram ideias: músicas, pinturas, textos. Mas é dessa qualidade de pensamento que também advém a Gnose espiritual.

   Então, as obras artísticas emanadas de quando se cessa todo pensamento racional apresentam a marca espiritual que define não só a obra, mas também o artista, como um indivíduo pneumático. E mesmo que muitas vezes artistas façam uso de substâncias alucinógenas ou enteógenas para alcançar esse objetivo, mesmo sendo aquela faculdade uma propriedade comum à todas as pessoas, a mente parece trabalhar em um processo parecido no caso da influência das substâncias ou sem o uso delas, a mente se desprende dos parâmetros racionais.

   A Gnose, por sua vez, como um elemento espiritual e religioso é um fator antigo no seio da humanidade e sua afinidade com a expressão artística é notada por estudiosos contemporâneos do fenômeno. Talvez pela intensa vontade de manifestação de Autenticidade individual, a visão gnóstica de mundo sempre converge para a manifestação artística, uma espécie de volição perene do espírito humano procurando se expressar materialmente.

   Essa faculdade então não advém da mente trabalhando em dieta racional, e não seria exagerado dizer que as grandes obras artísticas da humanidade foram geradas a partir  desse domínio irracional da mente humana.

   Argumentar a favor disso não prescindiria de um ucasse a respeito do que seja a Obra de Arte em si, e reivindicaria também a formalização dos gostos estéticos de quem argumenta. Mas para além de toda conceitualização a favor da essência irracional da arte, podemos concordar, a partir do entendimento comum da influência intuitiva, inspiratória e randômica, que sempre pauta a criação artística.

   Tais fatores são observados também no desenvolvimento dos elementos da Natureza, o que facilita ver essa ‘essência irracional’ dirigida por uma função de objetividade, necessidade e vivificadora no mundo, nas coisas, haja ver que o conceito de Vida é um dos mais difíceis de se definir.

    Levando-se em conta isso, eu poderia dizer que uma obra como “Almoço Nu” de Burroughs, ou um quadro de Dali são tão necessárias à vida como uma árvore ou uma água-viva no mar. Essas coisas são de alguma forma necessárias à realidade pois tem com ela uma relação de vir-a-ser.

   Pode-se nesse entremeio querer discutir o que define algo como uma obra de arte, e que eu em meu argumento defino tudo como obra de arte então, mas veja, o ponto aqui está focado não na obra em si, no objeto, mas no ato de autenticidade, de originalidade que manifestou essas coisas no mundo. E o fundo comum a isso tudo é essa tal ‘irracionalidade’ que paira como substrato imanente sobre todas essas coisas.


- Caos, Ordem & Entropia

    Humanamente definimos a Natureza, os animais, as plantas, os minerais como seres irracionais, e se define o ser humano como racional por fazer uso de faculdades mentais lógicas.

   A Natureza, digamos, o Universo todo, se estabeleceu, se desenvolveu então, não obstante esse fundo irracional que a permeia (algo que remete a visão da criação pelo Demiurgo), mesmo que, das partículas subatômicas aos sistemas biológicos complexos, o ser humano tenha entrevisto leis rígidas atuando, essas leis não diferem dos instintos animalescos que fazem, p.ex., um tubarão ser o que é, uma besta irracional.

   E até para além, mesmo que o Caos seja um mito, depois da ciência nos apresentar a formação fractal das coisas, mesmo essa ordem natural das coisas sempre decaí na entropia generalizada depois de executada sua função existencial.

   Ao fim, para além do racional e o irracional, a única coisa que dá qualquer sentido às coisas do mundo é a presença da mente reflexiva do ser humano. Basicamente estamos aqui para dar sentido ao Universo inteiro, incluindo aí os fatores das relações humanas.

    É nesse circuito então que se clareia os esforços espirituais que definem o indivíduo pneumático, o gnóstico, seja ele um artista nato, um místico ou um simples indivíduo de alma amargurada e desassossegada.


- A influência irracional no mundo

   Diante toda violência do mundo, a Gnose vem à mente em um estado de suspensão, quando ela, a mente, abandona o sentido de finalidade racional de sua presença no mundo e revertendo tudo para si, a mente declina na entrega à força da correnteza que sempre aponta, de ponta a ponta da vida, à inexistência, à morte, ao não-ser.

   Por isso os grandes temas da Gnose sempre tratam de uma forma ou de outra sobre o Nada. O Nada é a essência fundamental dos maiores afetos da alma.

   Assim também as mais interessantes, significativas e perturbadoras expressões artísticas humanas sempre giram em torno dos temas da Eternidade, Morte, Esquecimento ou Memória, Dissolução ou Renascimento, Queda ou Fracasso, Fuga, Loucura, etc.

   Nos textos gnósticos vemos também essas questões incluídas dentro da meditação espiritual ou espiritualista, vide o “Hino da Pérola”, “O Trovão: A Mente Perfeita”, “A Hipóstase dos Arcontes”, e o atual “Os Sete Sermões aos Mortos” de Carl Jung, entre outros. Tal fator é também notado em temas caros recorrentes de muitas religiões, haja ver as cores psicológicas em expressões religiosas como “noite escura da alma”, o Nirvana e a Moksha Budista, o “morrendo é que se vive” de Francisco de Assis, as batalhas de Krishna e Arjuna, a Juhad islâmica, as inspirações da Ayahuasca, os mundos paralelos dos Xamãs, a travessia do “Abismo de Daath” da Cabala, as lamentações de Jó, a Yoga apaziguadora do ego, etc.

    As anomalias são justamente as expressões atuais da religiosidade com as forças psíquicas guiadas à prosperidade, à felicidade materialista e ao “complexo de plena luz espiritual”, algo que Jung percebeu como extremamente danoso à sanidade humana como um todo, tanto física como psíquica.

    Nos temas clássicos da Gnose, como em Basilides, a função dessa inspiração divina está focada na lembrança de nossa ascendência Divina e na redenção desta matéria mnemônica, onde a evolução do Universo e do ser humano dentro dele fazem as vezes de um caminho rumo à plena conscientização do significado da vida, sempre rumo de volta ao Não-ser. Algo parecido ao que a Filosofia grega, oriunda da forte influência cultural e espiritual das visões expansivas de Elêusis denominou como o “Conhece-te a ti mesmo…” e a Teosofia moderna, o gnosticismo atualizado, define como o reconhecimento final por parte do indivíduo do Arquétipo que cada um executa em suas existências afins.

   Tudo isso converge para a noção de que não é pela inteligência que seremos salvos, não é pela razão que o ser humano logrará atingir a meta de liberação das agruras das encarnações sucessivas, mas sim pela aproximação do substrato indiferenciado advindo das sombras do inconsciente, dos parâmetros não humanos e irracionais que agem dentro do Universo e que talvez seja a influência real do Verdadeiro Deus fora da materialidade, o retorno ao que era antes do início, como o representou Basilides (cf. Hipólito):

“Quando digo ‘era’, não quero dizer que aquilo era,
e sim expressar o que quero indicar, eu diria que
nada realmente era. O que é assim expresso não
 é absolutamente inexpressável: nós o chamamos de
 ‘inexpressável’ mas não é nem mesmo inexpressável.
     É superior a qualquer nome que possa ser designado”.



- A ignorância no final de tudo

   Do mestre gnóstico Basilides, por fim, ainda há uma interessante referência a esta tal irracionalidade ligada ao fenômeno da Gnose, que é a “grande ignorância” (leia mais sobre isto no meu post…).

   Por causa de eventos nefastos que destruíram a obra de Basilides, crê-se, entre os estudiosos, que tal conceito foi mal relato ou até incompreendido pelas fontes “oficiosas” que relataram e destrataram o pensamento de Basilides, e que chegaram até nós, principalmente sobre o tema da “mega agnoia” ou grande ignorância.

    O fato é que a “grande ignorância” é o termo que designa a resolução final de todo processo evolucionário do Universo e do ser humano dentro dele, os quais depois de cumprirem a função rumo à reintegração do espírito de volta à Eternidade graças à revelação do Evangelho Eterno via Gnose, o Universo será enfim abandonado por qualquer função espiritual, qualquer capacidade racional de entrever as coisas espirituais, e uma grande ignorância de tudo cairia como um véu de fogo entre o mundo material e o transcendente. O que ficar aqui seguirá em um estado de animalidade, como em um sono, até a extinção físico-energética de tudo no Universo.

   Essa “grande ignorância” seria então um retorno das coisas ao seu lugar essencial dentro da irracionalidade ontológica fundante do mundo, que detém, mesmo sendo de outra qualidade da Eternidade, a marca desta.

    A irracionalidade, a mesma que conduziu a matéria e a formação da Natureza e da consciência humana, esta que abriga o Espírito ou a Mônada Divina no ser humano, prosseguirá operando, até se exaurir também. Vemos aqui que a natureza de tal “irracionalidade” não é ao pé da letra o que definimos por irracional, mas algo mais profundo, para além do que está só subentendido no pensamento, na mente, seria já a propensão para aquele próprio ‘sono’ que alcançará tudo como ‘ignorância’, não-saber, estando assim estabelecida sua relação essencial com o Não-ser, o que explica a liberdade ou potência que permitiu ao Demiurgo contruir sua obra.


- Arquétipos & Arcontes

“Honra na fera o espírito que fermenta…
Cada flor é uma alma em Natura nascente;
Um mistério de amor no metal reside dormente;
‘Tudo é sensível!’ E poderoso em teu ser se apresenta.”
Nerval

   De certa forma então, os artistas que se embrenham na senda da cessação de todo pensamento racional estão em sintonia com a finalidade fundante do Universo, a própria irracionalidade ou inconsciência, que carrega dentro da economia Divina, certo grau de rebeldia.

   Tais artistas, e também os raros pneumáticos de uma forma em geral, são sempre os que se aproximam das latitudes misteriosas e sempre sombrias, sendas não só de luz e nem só de trevas, que levam fatalmente à Completude tão almejada pela Alma.

   É no esforço de criação humana, nas obras de arte, que se lega aos que já estão adormecendo, aos sonâmbulos espalhados nas ruas pelo mundo, um último susto irracional diante da indiferença humana por tudo neste estágio da História, que a Razão tenha falhado em acudir contra isso é plenamente compreendido levando-se em conta que ela nunca esteve em condições de propor à humanidade caminhos para realizar na realidade cotidiana os anseios mais honestos que nos foram expostos em nossos sonhos.

   Se nossa messe neste estágio evolucionário é reconhecer o arquétipo que representamos, os artistas foram, dentro do seio da humanidade, os que adentraram neste saber foram os gênios, que efetivaram na vida a energia latente de sua inspiração, aos demais só resta ainda estarem sujeitos à lógica que atua como o Arconte atual da humanidade, designando-nos à uma vida tediosa, sem originalidade e imersa no medo.


    É isso que dá, almejar ser cordeiro e aos lobos respeitar,
    É nisso que dá, temer seu tigre interior e as garras do espírito
                                                                      não afiar!




10 de jan. de 2015

Je suis…?





 Assistindo na TV a extensa cobertura dos fatos que se desenrolaram em Paris nessa semana uma série de questões se desenvolve…
   Envolvidos no caldo confuso que a consciência tenta abarcar estão questões religiosas, morais, humanas.
   O evento revela por demais o momento humano que vivemos, o crescimento constante da violência, a aparição pública do fascismo novamente, as convulsões econômicas que viemos sofrendo nos últimos anos, enfim, a reordenação do mundo com premissas que talvez ninguém saiba quais são em sua totalidade.

   No centro de tudo, velhas questões repetitivas voltam. A questão judaica, o radicalismo, o terrorismo, a democracia… Por que tais pontos insistem em sempre andar juntos?
   É por certo que todos nós, seres humanos, somos os judeus do mundo. Aquelas pessoas comuns, zelosas por suas vidas, seus princípios, família e pátria, pessoas simples, sem grande poder aquisitivo, sem influência social, à mercê dos péssimos governantes que temos, vitimas das políticas econômicas e da corrupção, civis ofendidos pelo poder do Estado, da polícia, do sistema financeiros, dos formadores e arcontes das opiniões religiosas que berram nos altares das igrejas do mundo, todos nós somos os judeus.

   Mas a questão é mais extensa, mais abrangente.
   Carregamos ao bom modo humano todo o bem e todo o mal que pode haver no mundo, cada um de nós com nossa empatia ou apatia temos tudo o que é bom e ruim, e o destilamos em nossos atos, aqueles que executamos em atos, publicamente ou não, e aquele que resguardamos em pensamentos, em crença, pré-conceitos, etc.

   Vendo os fatos se desenrolarem na Sexta em Paris me lembrei do filme “O Julgamento de Nuremberg(Dir. Yves Simoneau, com Alec Baldwin), e as meditações que se desenrolam na película. Ali é tratado a questão do Mal, da Propaganda, da Punição Exemplar, da Intolerância dos Povos, da Insanidade, e comparando a situação dos Nazis, do esforço pela Justiça, da violência da guerra o que mais denota medo em um primeiro momento é a impossibilidade de um dia podermos, como sociedade, levar a julgamento pessoas que comentem crimes da natureza como os que aconteceram em Paris.
    Agora já não temos mais um Estado e seus lideres cometendo crimes de guerra, temos pessoas de diversas nacionalidades, ajuntados sob uma capa religiosa facínora, algo do tipo do qual não há como se manter um diálogo. Com os Nazis, apesar da enormidade de seus crimes, ainda foi possível conversar com eles, proceder interrogatórios, apresentar provas, dispor defesa judicial, mas agora, neste caso, neste momento, estamos em um vácuo ético onde a única resposta que se prontifica contra tais crimes é a violência também.
    Não sei nada de Direito Internacional, apenas tenho a noção transpirada pela realidade cotidiana que o Estado pode cometer crimes terríveis, enquanto o cidadão não, não pode nem cortar uma árvore na beira de uma represa.
   A lacuna de justiça entre o Estado e o Terrorismo é a mesma entre o Estado e o Cidadão, mesmo porque o Estado hoje, alguns países, carecem até de argumentos plausíveis para se justificar o porque certas pessoas detem cargo de comando maior em uma nação. A Insanidade ganhou a luta contra a Legitimidade, e fez isso através da propaganda.

   No filme “O julgamento de Nuremberg” tenta-se explicar o mal encarnado pelos Nazis como a propensão histórica e psicológica do povo Alemão pela obediência ao líder, mas isso, a que bem atento observe é o segundo momento em um processo, algo muito mais perigoso e essencial volve nesse poço fundo, e tem a ver com a própria questão da liberdade humana, o que leva à Democracia.

   No  Budismo há o ensino: “Disciplina é Liberdade”. Com esse adágio em mente podemos compreender a intrínseca relação que acontece então ontem e hoje com a questão do terrorismo de Estado (Nazismo) e o terrorismo de grupos religiosos (Isis), a disciplina a que ambos foram submetidos deram a eles a liberdade de trucidar seres humanos! E liberdade aqui quer dizer coragem, uma relativa paz de consciência e os argumentos para fazerem o que fazem.
   É claro, sabemos evidentemente que há a liberdade para fazer o que é bom e para fazer o que é ruim, mas para ambos se exige disciplina, treinamento, esforço repetitivo.
   Em o que mais as sociedades Ocidentais vacilaram ao longo de sua história moderna foi então em educar as pessoas para ter a liberdade de fazerem o que é bom, à nível social, coletivo. Aquilo que chamamos Democracia, no conceito atual da ideia, não se distinguiu muito de seu conceito fundante nos Gregos, onde o “demo” da democracia era o povo entendido como as pessoas superiores, a elite.
    Se vendeu a ideia da liberdade de escolha política para todas as pessoas, mas nunca foi assim. Porque escolher é uma coisa, mas receber as benesses do poder do Estado é outra. Por isso foi fácil e eficaz prescindirem de dar disciplina à sociedade, porque os governos, como o do Brasil por exemplo, não quer mais nada do populacho a não ser os dividendos financeiros do suor de seus corpos, e hoje, até isso não é mais suficiente ao nosso Estado, logo quererão e terão o sangue também.
   Essa é a encruzilhada que a Democracia se encontra, em qualquer país Ocidental. A reação conservadora retornou, o fascismo ganha força, as pessoas entregam sua liberdade em troca da segurança contra o terror e o jogo sinistro entre a tal “democracia Ocidental” e o “terror islâmico” vai se prolongando, se instalando cada vez mais, até nos países mais evoluídos socialmente.
   A quem isso é conveniente? A quem é conveniente sempre existir o inimigo? O outro? Que ganha com a divisão em polos do mundo?

   Sinistra e profética foi então a declaração final de Albert Speers no processo de Nuremberg:
   “Como uma nação, tão avançada, tão culta, tão sofisticada como a alemã, ficou sob o domínio diabólico de Hitler? A explicação é a comunicação moderna. Um líder não tem mais que delegar autoridade através de seus subordinados que exercitam julgamentos independentes. Devido a comunicação moderna Hitler pode comandar direta e pessoalmente seus subordinados. Quanto mais o mundo tiver tecnologia, mais a liberdade individual e a independência da humanidade se tornam essenciais. Essa guerra acabou com foguetes controlados à distância, aviões que se aproximavam à velocidade do som, submarinos e torpedos que podem encontrar seus alvos, bombas atômicas e a terrível perspectiva da guerra química. Daqui a 5 ou 10 anos, esse tipo de guerra oferecerá a possibilidade de disparar foguetes de um continente à outro com fantástica precisão. Pela divisão do átomo será possível destruir milhões de pessoas na cidade de Nova Iorque em questão de segundos com um foguete dirigido, talvez, por dez homens. Uma nova guerra em larga escala vai acabar na destruição da cultura humana e da civilização. É por isto que esse julgamento deve contribuir para a prevenção de tais guerras no futuro. Uma nação que acredita no futuro nunca perecerá. E que Deus proteja a Alemanha e a cultura do Ocidente”.

   A prioridade dileta das Democracias deveria ter sido conservar a liberdade e a independência da humanidade, ou pelo menos deveria zelar por isso de agora em diante, mas não a faz. Cada vez mais dispensamos nossa vontade própria e tomamos a vontade que outro quer que pensemos ser a nossa.
   Confrontados hoje com as ações do terrorismo, seja de Estado ou de grupos independentes, sejam as guerras religiosas e raciais, seja a guerra por contingentes naturais e comerciais, a guerra econômica, as pessoas não podem se alienar da verdadeira premissa que faz de nós todos humanos, nossa liberdade pessoal e nossa convergência como povos independentes das querências de grupos minoritários dentro da sociedade, uma operação difícil de se resolver, mas que a única proteção que temos para usar contra os terrores do mundo ainda é a disciplina, a educação, a formação pessoal, pois percebemos que mais do que bombas atômicas, os estragos causados por indivíduos, com armas simples, são as que mais estragos causam à vida.
   Temos que nos conscientizar o quanto antes sobre a questão da tecnologia como ferramenta de aproximação das pessoas, e não como contundentes instrumentos de manipulação, disseminação do consumo e do individualismo, além de sua preponderância como instrumento de manipulação política. Nenhuma pessoa só irá “salvar” um país, ou o mundo.

   A encruzilhada se apresenta, nações como a França, a mais bem dizer, o povo francês, com seu espírito democrático, sua longa história de luta pela evolução do ser humano, onde ainda respaldam na bandeira as cores da “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, não podem ceder cegamente ao ódio advindo de uma disciplina e uma dieta de ódio, que tão facilmente é engendrada na mente humana pela via religiosa pela boca de poucas pessoas.
    As pessoas conscientes de todo o mundo devem afirmar publicamente que também a religião ameaça a liberdade e a independência humana, e colocar o quanto antes em seu lugar certo dentro das sociedades verdadeiramente democráticas a questão da crença, da liderança religiosa, separando-a definitivamente do Estado.
    A periculosidade dos lideres religiosos se faz notar justamente via a plataforma tecnológica da comunicação, aliada à uma proeminência econômica fortíssima, esse conluio de fascismo religioso, superstição e egoísmo deve ser superado um dia pela democracia, e aí, como vai ser?
   Devemos ser educados dentro da disciplina da tolerância, e isso deve ser exigido partir de dentro das instituições religiosas, não de fora. Algo que deve ser imposto pela sanidade secular como um “novo dogma” em toda religiosidade, uma forte afirmação humana que respeitamos o que há de mais sagrado no mundo: a vida.
   Disciplinados na vida, poderemos decorar as telas fúteis dos aparelhos digitais que canalizam sites de relacionamentos com hashtags mais interessantes: #eu sou humano, #eu tenho dignidade, #eu mereço respeito dos governantes, dos padres, dos pastores, dos rabinos, dos mulás, etc.
   Ou fazemos assim, os continuaremos a sermos vítimas da liberdade que não temos, pois o ópio das massas exige cada vez mais inimigos para se manter a farsa de que o futuro será melhor, pois assim nunca será!


2 de jan. de 2015

CelloXV



Fechados,
                ainda,
   meus olhos já enxergam
      que a manhã não chegou…

Na penumbra da aurora,
                                      ainda,
   entre o sono & a sanha
      não posso reconhecer o que é sonho
         & o que já posso pensar por mim…

Onde eu estive,
                         nas últimas horas,
   ninguém pode dar notícia
Só, eu fui
               &
                   só, eu voltei
   visitar
             tudo & todos
                                  dentro de mim…

   Consciência é dor & prazer, quando acordo nesse lugar, & sempre quando acordo, acordo nesse lugar, meu corpo, isso é só carne, não durará, não durará, mas o que distende & se estende quer confundir-se, quer se fazer dizer mais do que carne, mesmo que seja sempre corpo.
   Inconsciência sempre vem como lembrança, são sonhos, & creio, por uma parca gnose, que o melhor dizer sobre o sentido incubado dos sonhos é que são sons, são ecos, reverberâncias, somnus.
   Em parte alguma encontro o vazio, o vácuo, avoid, há apenas no máximo o mínimo, & para quem já se cansou de tudo o mínimo ainda é muito. Talvez, procura em vão, que queira, como eu, achar um abismo comum que provenha a abertura para toda cessação.
   & o dia se propõe diante de mim… Serão horas & horas que se dedicam ao presságio temporal dos ventos que acometem a consciência, para me jogarem para lá & para cá, pelas ruas, corredores da casa, farmácias, banheiro, banca de revista, sala de estar, supermercado, garagem, centro da cidade, cozinha, espaços por onde o corpo passou…
   Nas ruas, lenta, vi uma menina, tão magra & perfeita, não muito bela, até sinistra em sua beleza de ossos & pouca carne, tão desejável, tão feminina em sua magreza… sonhei com ela, na fila do supermercado, enquanto ela me ignorava, nem eu nem ela existiam um para o outro até nossos olhos se tocarem com aquilo que chamam de visão. Não há fim, enquanto vivemos, para tudo que ganhamos & perdemos, na mesma proporção, dos encontros que nunca mais se repetirão.
   Esse dia acontece, devo agora dizer, nem tão tarde, nem tão nunca, como o som de um violoncelo, solo, grave, lento, aquele êxtase entorpecido da fricção entre a corda & o arco, esfregando, em uma rançosidade deliciosa, intenso formigamento vibrante das ranhuras da realidade.
   & assim tudo é uma dança, uma valsa lenta de um concerto de cellos, onde o tom mais grave é o corpo daquela moça…
   Deixando-a para trás, com as oferendas de um próspero Ano Novo, um sorriso & o sussurro do obrigado dos alheios, parto novamente pelas ruas me arrastando como o arco nas cordas grossas do violoncelo, vou chegar aonde devo ir ao longo da estrada dos dias.