24 de jun. de 2015

Serendipite


Incauto, espero que o acaso me favoreça
   entre luzes & sombras de um dia como os outros
Nada me resta a não ser deixar me arrastar pela textura
   tecida pelo fio trançado das Parcas
Sigo a linha mesmo sem me recordar onde vai dar...

Ela me levará mais uma vez
   para o repouso indolor do sono irmão da morte
E fazer-me recordar do que estou preste a esquecer
Mesmo que me venha em sonhos
Mesmo que seja uma presença inesperada...

& nos sonhos te encontro novamente
   me falando de coisas que nunca existiram
Eu escuto seus vaticínios sonhados
   como quem aceita a dádiva de uma surpresa desviante
É assim, mais uma vez, que você volta para mim...

Nas entrelinhas escrevo o acervo de alegrias reminiscentes
   que nunca aconteceram entre nós...
Elas são nomes de lugares, ideias de paixões
   crianças que nunca tivemos
& encontros furtivos pelos caminhos oníricos...

Me prostro na dobra do vento
   ante os momentos que se foram e os momentos que nunca serão
Enxergo com límpida ofuscação
   a forma do seu rosto que vai se perdendo com o tempo na memória
Eu sei que já há algum tempo tu és só uma ideia em meu coração...

Mas não deixo se apagar em mim
   o apego que tenho em ainda estar a procura
Daquele dia radiante em que terei mais
   do que uma vontade inesperada de te encontrar
      pelas ruas da cidade...




16 de jun. de 2015

Mensagem no Bico da Andorinha



Nó-mundo, amarra da paixão,
Não havia lugar melhor pra estar
   do que aquele ao alcance do teu olhar...

No mundo, inundado de amor,
Não há lugar melhor para viver
   do que este em que o perfume vem de você...

Nu-mundo, despido de todos os véus,
Sei que não haveria lugar melhor para morrer
   do que aquele no meio de você...

Pensamentos voam
Eles são as asas da saudade
Dá a volta no mundo, sem achar repouso
Mundo nó
Mundo nu
Me pesa & pesará
O nó nu
Exposto no peito
Do meu mundo sem a letra A.

                                                            Saudades imensas...
                                                                                    do tamanho do mundo...
saudade de você!



8 de jun. de 2015

Em Busca de um Humanismo



“A essência do ser-aí reside em sua existência”
(M. Heidegger, Ser e Tempo p.42).

      “A existência precede a essência”(J-P. Sartre,
 O Existencialismo é um Humanismo p. 11).


   Se chegamos demasiado tarde para os deuses e demasiado cedo para o Ser, então podemos dizer que nós, humanos, somos seres que estamos, no mínimo, entre um paradoxo da existência e do pensamento, o qual nos cabe resolver.

    Essência e existência, pensamento e ação: eis clareiras humanas, para onde as sendas do tempo e do nada nos conduzem com a ajuda da “bússola” do Ser.

    Nessa abertura, a realidade com a qual nos deparamos, uma questão é proposta, ela não é a questão essencial (a questão do ser), mas nos fala muito sobre tal reflexão, essa é a questão do Humanismo.

   Martin Heidegger (1889-1976) nos chama a atenção para tal questão ao buscar pelo sentido original do Ser, nos esclarecendo que toda a história da Filosofia de Platão até hoje, é na verdade a história do encobrimento do ser.

   Quer o filósofo alemão nos guiar de volta às questões do Pensar, da Linguagem, da Morte, da Poesia, do Ser ...

   Jean-Paul Sartre (1905-1980) por sua vez tem preocupações mais práticas, engaja-se em uma práxis pelo sentido e suportabilidade da existência humana e os rumos que o indivíduo dá a ela. Quer ele dar ênfase ao ente-com-os-outros.

   O filósofo francês, além de querer dar um sentido ético ao existencialismo, nos conduz às questões da Ação, da Liberdade, da Responsabilidade, do Ente humano...

   E o Humanismo?

   Heidegger quer se por fora da História da Filosofia para nela denunciar o “encobrimento do ser”. Sartre parece não se preocupar com tal questão e se entranha no ser humano para tentar revelar seus fundamentos existenciais.

   Heidegger diz que existência e essência atuam ao mesmo tempo para definir o modo de ser do ser-aí. Já Sartre declara que existir é fator a priori de qualquer essência.

   A questão do humanismo, porém, se entremeia nessas paragens de forma dissimulada, mas se prestarmos atenção ao cerne do conceito de humanismo, veremos que tanto a posição de Heidegger quanto a de Sartre sobre a situação do ente, mas bem dizer, do homem, influenciam também sua posição final a respeito do humanismo.

   O humanismo para Heidegger é um desses conceitos que expressam claramente o encobrimento do ser, pois põe o homem como o centro das questões em detrimento do Ser, o qual deveria ser, ele sim, a medida (ou rumo) para todas as coisas.

   Sartre declara sua filosofia existencialista como uma forma de humanismo, a qual torna possível a vida humana, pois o homem não é nada mais além do que ele faz de si-próprio, ele quer uma doutrina que possa dar liberdade total ao homem.
  
   Para Heidegger (e o que é tácito mesmo), o humanismo é uma ideia relativa ao tempo e ao lugar onde os homens o pensam. O humanismo de Sartre é filho de seu tempo e vivência, filho de uma tremenda desilusão pós-guerra onde, asfixiados, homens de bem querem dar novos rumos à existência humana, como que se sentissem abandonados por Deus (ou pelo Ser).

   Mas sobreviveria a noção corrente de humanismo ao “atemporal filosófico-histórico”, lá onde se deixa que o Ser seja? Ao antes da Filosofia e o consequente encobrimento do Ser?

   Na carta “Sobre o ‘Humanismo’”[1] Heidegger como que propõe tal “exercício” ao introduzir a narrativa sobre Heráclito (-500 a.C.), voltando à origem do pensamento antes de sua corrupção.

   Remete-nos ao fragmento B 119: “etos antrwto daimon”, o qual uma versão moderna traduz como “o modo próprio de ser é para o homem o demônio”[2].



   Heidegger focaliza-se sobre o termo etos (ethos – o qual hoje teria o sentido de ética), originalmente significando “habitação do homem”.

   O filósofo alemão remete-se a isso para complementar a explicitação de outra passagem de Heráclito que é narrada por Aristóteles [3] onde o principal é o dito final. O caso é o seguinte: Heráclito foi visto por curiosos se aquecendo junto ao fogão, ele vendo a decepção dos visitantes, os estimulou a se aproximarem dizendo: “Pois também aqui estão presentes deuses...”.

   O sentido desse dito é que em lugar tão banal quanto uma cozinha, lá onde cada agir e pensar é também banal e familiar, na cotidianidade e simplicidade de se aquecer ou assar o pão, nisto tudo os deuses também estão presentes, ali o Ser também fala ao homem.

   Nós, homens da maturidade da era atômica, chegamos tarde para esses deuses, mas persistimos no humano habitar, por mais que os tempos e a tecnologia incrementem nossos lares e nosso cotidiano inteiro, dispomos nossas vidas em rumos que nem mesmo sabemos onde darão (sendas que levam a lugar nenhum?!), porém sob a luz da atitude de Heráclito e seu sentido de eqos/habitar, a existência pode tomar rumos autênticos e o lugar do homem estabelecido em bases diferentes.

   Sob a luz do atemporal o humanismo deixaria de ser uma doutrina do homem pelo (e para) o homem. Etos antrwpo daimon, diz o próprio Heráclito: ‘A habitação (familiar) é para o homem o aberto para a presentificação do Deus (o não-familiar)’”[4], essa a tradução de Heidegger.

   Que o humanismo não seja a habitação para mais um erro, vindo a tornar-se puro humanitarismo ou um assistencialismo psicológico relativista, o humanismo assim abre o homem para o advento e presentificação... do homem!

   Para Heidegger já é hora de se ser “simples”, e nisto reside a chave para se saber que não se é mais demasiado cedo, mas que o Ser (“...deste o homem é poema...”[5]) já está presente aqui, junto ao ser-aí, seu Pastor.

   Há de se pensar o “humanismo” então como o pensamento que nos abra não para o homem somente ou o homem como medida do Ser, mas para o pensar no qual se propicia  habitar no homem o Ser, (re)inaugurando uma nova relação humana.

    Este pensar não é a Filosofia ou a Metafísica, não é também um saber absoluto. Seria esse novo pensar a Poesia? Seria esse pensamento um caminho em que estar-a-caminho seria a verdade, como diria o professor Emmanuel Carneiro Leão: “existência humana é viagem que o homem faz entre realidade e realização”.

    Este “pensar está na descida para a pobreza de sua essência precursora” [6], tal pensar, se correto, leva o homem a participar autenticamente dos acontecimentos e não a ser o centro-dos-acontecimentos; ator principal, talvez sim, mas não o escritor da peça onde se encena, entre quatro paredes ou pelo caminho do campo, a tragédia da existência e do nosso destino historial, nossa saga onde o Ser simplesmente é, e que aí o homem possa ec-sistir.

    Para concluir este pequeno ensaio não podemos deixar de apresentar o que Heidegger definiria como “termo substituto” para Humanismo; pois, se para Sartre o Existencialismo é um humanismo, para Heidegger o humanismo é apenas uma porta para introduzir o pensamento no âmbito da Analítica Existencial.

    No sentido do estar-a-caminho, Heidegger propõe que esse humanismo seja humanitas, um pensamento nem teórico nem prático. Essa humanitas é ec-sistência pois agora ela pertence ao Ser, é nela que o ser humano se torna esse habitar no qual o pensar que é advindo do Ser permite construir seu lugar original no mundo.
   



Notas:
[1]- In “Heidegger – Col. Os Pensadores” pp. 148 a 175.
[2]- Uma curiosidade:Tal tradução nos remete à afirmativa de J-P. Sartre de que “o inferno são os outro”,
       e mais toda a especulação do texto “Entre Quatro Paredes”.               
[3]- Ver “Sobre o ‘Humanismo’” pp. 170 e ss.
[4]- In “Sobre o ‘Humanismo’” p. 171.
[5]- In “Da Experiência do Pensar” de M. Heidegger, 1947.
[6]- In “Sobre o ‘Humanismo’” p. 175.