26 de abr. de 2014

Sobre “Pedras, Plantas e outros Caminhos”


"Pedras, plantas e outros caminhos" é um documentário que conta a história de um AT (Acompanhamento Terapêutico) feito por Thais, a acompanhante, a Ney, o acompanhado. O filme cartografa encontros, agenciamentos coletivos que foram tecendo e se tecendo no vínculo entre a acompanhante e o acompanhado: gestos, tons, olhares, risos, gritos, cantos, ventos, conversas, plantas, pedras... estórias que compõem esta intensa e difícil busca de produção de cuidado e autocuidado em saúde mental, acontecendo ali onde vive o acompanhado, na rua, tendo ele um transtorno mental grave e fazendo uso prejudicial de drogas. Trata-se de uma complexidade em processo, de onde o filme foi apenas um recorte, um traçado a respeito de uma experiência clínica, e que somente poderia ser contada de uma forma poética. O filme funciona como intercessor para que se possa contar esta exitosa experiência de cuidado a céu aberto. O que se espera é que o documentário possa fazer proliferar outros saberes e práticas de cuidado e reinserção psicossocial, funcionando como um dispositivo ético, estético e político de resistência e produção de subjetividade e cuidado em saúde mental.
Este filme foi realizado pelo Coletivo de ATs com a coordenação do prof. dr. Ricardo Wagner Machado da Silveira do Instituto de Psicologia - IPUFU; em parceria com a equipe da TV Universitária, com a produção de Sheila Nogueira; trilha sonora do Grupo de Percussão da UFU com a direção do prof. dr. Cesar Adriano Traldi do curso de Música. 
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   Assistindo o documentário sobre o atendimento psicológico de Acompanhamento Terapêutico (AT) desenvolvido por estudantes da Universidade Federal de Uberlândia, o qual gira em torno da figura do morador de rua Ney que habita nas imediações da Praça da Igreja de São Cristovão no Bairro Brasil, tive muita coisa para pensar.
   Gostaria primeiramente deixar claro que não sou um terapeuta, me atenho ao lado filosófico e espiritual da situação humana, então tudo que direi aqui não passa de “teorias”, não haverá, para muitos, nada de prático, como o precioso trabalho executado pelos membros do Coletivo de ATs e seus esforços em divulgar seus métodos. Minha reflexão circundará a situação humana e procurará estender esse exercício filosófico à sociedade, para por fim ser um material de crítica social e daí ter alguma função, que seja pelo menos psicológica.

   Morando no Bairro Brasil, cresci frequentando com meus pais a Igreja de São Cristovão. Ali acompanhei desde cedo a triste sina existencial do menino Ney, e ao longo dos anos, mesmo não comparecendo frequentemente à igreja, vejo constantemente o Ney pelas ruas do bairro, aqui e ali. Noticias de sua condição ainda me chegam em casa, entre uma conversa e outra com meu pai ou até com amigos e comerciantes das imediações.
   Do pouco que sei da vida do Ney é que cedo ele começou a usar narcóticos, tal iniciação, em minhas lembranças, parece ter sido uma espécie de constatação de certa forma sem escândalos na comunidade da igreja, da qual seu núcleo familiar é vizinho. Lembro de um dia meu pai citar que o Ney estava “afundando na droga!”, ou algo assim, isso a cerca de uns quinze anos atrás, se a memória não me engana.
   De lá para cá o degradamento humano do rapaz saltou aos olhos. Dissidências com a família, sua avó, que pelas línguas alheias era um relacionamento tumultuado. Internações e recaídas até que ele “saiu de casa”, mas nunca saiu das imediações da praça.
   Ao longo desse tempo, desde sua tal “iniciação no mundo das drogas” até hoje, o ambiente dessa espécie de submundo sofreu uma alteração terrível e com ela toda nossa sociedade, quando as plantas começaram a ser substituídas por pedras na vida dos adictos. Nossa sociedade descobriu muito tarde, anunciado um dia finalmente na TV domingo à noite sobre a nova epidemia de drogas representada pelo Crack.
   Depois desses tempos, o álcool, o cigarro e a cannabis pareceram ser rebaixados em seu status de moléstia social e familiar e o poder deste subproduto do refino da cocaína nivelou os seus usuários à um nível quase inumano. O Ney é uma dessas pessoas, que por sorte ou azar da vida, sobrevive ao longo de muitos anos carregando o fardo pesadíssimo do vício em Crack.
   Se toda nossa sociedade acordou tarde para os perigos do Crack, a comunidade em volta da Igreja de São Cristovão não só perdeu também a hora de acordar, como dormiu profundamente dentro de um pesadelo que zelou com olhos cegos de indiferença ou tamanha inocência provinciana, que hoje este rapaz se tornou a materialização da vergonha de nossa inconsciência social.
   Digo isso porque o Ney cresceu e diminui ao lado de todos nós, praticamente dentro da Igreja. Neste período passaram por ali talvez uma dezena de Padres, uma centena de participantes costumazes da paroquia, e mais milhares e milhares de pessoas em busca de Deus, e mesmo assim, pouco se fez para desviar o Ney de um caminho tão nefasto. Alguns tentaram ajudá-lo sim, mas sempre prevaleceu aquilo que todos viam como a escolha pessoal dele, e não a vontade das pessoas que o tentaram ajudar.
   É claro, não estou aqui culpando ninguém da Igreja pelo que acontece à vida deste rapaz, mas me abisma (e podem dizer que sou cínico ao dizer isso) ele ter se tornado o que se tornou diante de toda uma comunidade cristã organizada.
   Isso me lembra um mote que certa vez ouvi em um filme que assisti: “Por que é tão difícil salvar alguém?”
   Todos temos respostas para isso, desde as preocupações com nossas vidas, os problemas que temos dentro de nossas próprias casas, o fato de alguém não querer ser “salvo”, a periculosidade que gira em torno dessa situação especifica, onde há também a figura do traficante, das bocas de fumo, e a sempre presente covardia humana escondida sob todas essas, até justas, respostas.
   Esse é apenas um ponto de minha reflexão, uma vergonhosa mea-culpa que não leva a nada, como toda teoria, mas que capacita a reconhecermos que o Ney não é só uma caso de mais uma pessoas estraçalhada pelo vício em drogas, mas é um produto de nossa própria incapacidade ou coragem de fazer uma coisa melhor pelas outras pessoas, mesmo que elas não queiram, mesmo que elas sejam fracas em vontade e que a dependência seja tão forte, etc. Existe sempre algo a se fazer, e em situações como essa a palavra Coragem sempre surge no meio da práxis, por isso me admirou profundamente o processo levado a cabo pela Acompanhante Terapeuta do Ney, Tais. 
 No simples ato de estar presente, de se aproximar que não fosse para dar esmolas ou rir junto ou ridicularizá-lo, ela tenta dar ao rapaz uma coisa que talvez ele nunca teve, um ponto humano para se apegar. O acompanhamento, eu vi assim e me corrijam se eu estiver errado, é uma espécie de ancoramento à realidade de um indivíduo que se desfez.
   Estar ali, chamar para conversar, cantar junto, denota uma situação imprescindível para qualquer um recuperar sua humanidade perdida, pois a humanidade de cada um de nós nunca é sentida quando estamos sozinhos, a humanidade é um sentido coletivo que carregamos individualmente, uma parceria no mínimo, e foi isso o que talvez nenhum de nós da comunidade nunca tenhamos feito pelo Ney.
   Esta menina magrinha, de olhos extremamente tristes, mas que mostram um espírito profundo, é uma espécie de lume no meio de toda escuridão e tortuosa irrealidade que se apoderou da mente do Ney, e lhe disse, em silêncio: “Olha aqui Ney, olhe para mim, fale comigo, eu sou uma porta aberta por onde você pode voltar para o mundo…
   Mas mais do que isso em relação a ele, ela é também um sinal para todos nós, para todos os que passam diariamente por aquela praça, por aquela igreja, ela fala também com nossos próprios problemas, com a doença social que carregamos dentro de nós, talvez muito mais nociva do que o vício em drogas, ela representa, junto com seu Coletivo todo, uma salvação para nossa condição humana também.

   Philip K. Dick escreveu em uma nota final de seu livro “O Homem Duplo” que todos os que “brincam” com a vida são finalmente punidos (Dick, pp.305-307), ele se refere ao uso abusivo de drogas, e dita que o “inimigo”, o punidor desses, foi a própria escolha errada de brincar com a vida. No caso do Ney não sei se isso vale, pois por mais que me lembre do rapaz feliz e bem vestido cantando músicas sertanejas nas festas da igreja, parece que quem brincou nesse caso foi a nossa comunidade. E qual será nossa punição?
   Sempre quando vejo o semblante do Ney, um ser humano desfigurado, alguém que facilmente poderíamos dizer que teve sua alma despedaçada pelos tóxicos e agora vive como um animal pelas ruas, sempre sem camisa, rindo e conversando sozinho, dormindo sob marquises… um frio corre na espinha e sinto que nossa punição…, não, a minha, é que também perdi um pouco de minha alma ao não ter feito nada por ele.
   Se é verdade que somos seres coletivos, que a humanidade somos cada um de nós em uma soma final, então a dor e confusão de cada indivíduo humano despedaçado pelas drogas é também a dor e confusão de todos. Em que tragédia estamos metidos!
   Essa tragédia então é maior quando de repente não estamos falando mais do Ney, mas de nossa sociedade inteira, estamos falando sobre o “problema das drogas”, e as coisas se tornam muito mais amplas e complexas.
   O método de AT revela uma simplificação, ele não quer mudar o mundo, isso não é possível. E em organizações de Ajuda em Grupo, as primeiras coisas que aprendemos é reconhecer nossa doença ou deficiência moral, entendermos que podemos ajudar a nós mesmo, um dia de cada vez, etc.
   Entender que mudando a nós mesmos mudaremos o mundo é uma coisa aliviante, pois o que há de menos abstrato nesta equação é o indivíduo, somos nós mesmos, e assim o indivíduo se abre também como porta de mudança para a sociedade. Salvar um é salvar todos!
   Como disse William Burroughs no livro “Almoço Nu”, “o viciado nas ruas… é o único fator insubstituível na equação” da droga” (Burroughs, p.245 e ss.), ou seja, quando não mais houver dependentes não haverá tráfico de drogas, e em uma geração pode-se acabar com os problemas das drogas, teoricamente.
   E aí podem rir da simplicidade da constatação, mas por que ainda não o fizemos? Vão dizer, por justamente não ser simples assim?! Mas é!
   Para encurtar esse ponto de reflexão, posso dizer que existem medicamentos, somados à terapias que podem livrar as pessoas de qualquer vício, até do Crack, o que falta é interesse de cima, pois gira em torno das drogas muito, muito dinheiro, dinheiro legal e principalmente, dinheiro ilegal. E nosso sono vai gerando um monstro cada vez mais forte!

   De uma forma muito contundente a existência do Ney adentra e se confunde com a existência de cada um de nós, se tornando arquetípica a situação desse rapaz diante nossa comunidade principalmente, e eu enquanto pensador não posso me refutar a pensar sobre isso.
   A doença que ele carrega, seu definhamento público, passa por um problema de saúde física particular a um problema de saúde mental de todos nós, um problema espiritual. Vejo a sincronia destas relações se desenvolverem ao lado de minha vida, de minha família e meu lugar de existência com severidade, como sempre enxergo as questões psíquicas que me envolvem, pois é disso que tiro o substrato para minhas reflexões e meu autoconhecimento. O Ney faz parte de mim, e gostaria que os meus vizinhos, o pessoal da igreja de meus pais e todos no bairro pudessem ter a sensibilidade de refletir um dia assim. “Gostaria”, não sei se um dia um ou dois por aqui irão. Talvez existam os que tenham feito isso…

   Uma pessoa usa droga para “anestesiar” uma dor, e todos nós temos uma “dor” latente, física ou existencial. Para aliviar a dor alguns usam televisão, outros cigarros, uns usam sexo, outros comida, há aqueles que usam esportes ou o trabalho para não se concentrarem na dor, alguns ainda fazem uso da religião ou do ateísmo dialético, mas todos são viciados em algo para suprimir a dor constante que surge com a vida.
   Ela está aí, a cada momento, uma dor em forma de preocupações financeiras, uma dor constante em forma de carência amorosa, uma dor na forma de pobreza ou riqueza, uma dor que toma a forma de decepção cotidiana, mas é sempre a mesma, e o Ney a cantou no documentário com o nome de VAZIO, “o vazio que mora no fundo do meu coração”. É essa a fonte da dor humana perene, é ele que nós leva às drogas ou a qualquer compulsão.
   Talvez seja este vazio, mais do que o sangue ou a forma, que nos ligue a todos como seres humanos, como humanidade, e o vazio é sempre fome, e é o que ao final ligue o povo ao líder, o viciado ao traficante, fome. E fome é fome de poder.
   Poder é mandar, sim, mas poder é também potência, então o vazio humano se revela como uma eterna incompletude, uma constante tendência de reconhecer que podemos ser mais, que devíamos ter mais, e psicologicamente vai até ao ilimitado, o infinito que é Deus. Vida e principalmente morte bailam em torno desta questão da potência humana.
   Acerca disto então, como bem lembra o professor Emmanuel Carneiro Leão falando sobre “Juventude e Tóxico”, há um “problema do homem” e não um “problema da droga”, onde “na droga se põe em jogo a própria humanidade do homem(Leão, p.41).
   O professor faz uma profunda reflexão sobre a condição humana que não só cabe aqui então para refletir sobre a questão particular que estou falando, mas se abre à questão existencial humana de tal forma que poderiamos perder o rumo da reflexão se formos propensos a querer continuar cobrindo o sol com peneiras. Mas como eu disse que falaria de teoria, e não de prática imediata, como o trabalho do AT, entro no assunto. Mas não se engane o leitor, da teoria pode surgir uma prática correta também, e isso é a tarefa do pensamento racional que pauta qualquer ciência.
   A sociedade de nossa época vive sob a premissa da equação SABER = CONTROLAR = PODER, tudo que é humano está submetido a isso hoje em dia, desde nossa própria individualidade até nossa comunidade, e quanto mais implementamos isso na vida, menos LIBERDADE temos! Dentro disso se choca principalmente a questão da JOVIALIDADE, dos projetos de vida de alguém feitos enquanto se é jovem, no momento quando dá de cara com a realidade do mundo de hoje, a equação acima e a falta de liberdade impõem-nos então a DESUMANIDADE. Para se entender onde entra as drogas e seus efeitos sociais e existencias em tudo isso é um caminho “psíquico-lógico”. Cito totalmente o professor Carneiro Leão para fazê-los entender, ele pergunta:
“Como a juventude procura realizar a jovialidade no mundo de hoje?”
   E nos dá esta reflexão final:
“Não encontrando espaço para de expansão para suas possibilidades de futuro,a juventude contesta e contradefine o sistema de controle em todos os níveis da linguagem: no verbal e imaginativo, no gestual e perceptivo, no situacional e coletivo. Pois é aqui, na dinâmica desta contradefinição, que se insere o uso das drogas e entorpecentes. O sentido hermenêutico do tóxico é, portanto, essencialmente ambíguo. Articula-se em duas dimensões. Mais profundamente exprime a dinamização de um projeto de jovialidade e de futuro. Mais na superfície, nos caminhos de
sua concretização situacional, desvirtua-se num compromisso com a própria essência da sociedade afluente e da subjetividade moderna. Pois participa da mesma atitude de controle e domínio. É o esforço de controlar a própria jovialidade e de dominar o próprio futuro. É a tentativa de eliminar por uma técnica o próprio mistério do homem. O tóxico, que deveria ser meio de libertação da jovialidade, se transforma, pela dependência, que induz, na pior escravidão. Na escravidão de uma liberdade aparente e artificial. A conversão se torna aversão à jovialidade, a libertação se torna fuga do futuro, o misticismo se torna perda do destino próprio.” (Leão, pp.42-43)


   Nesta reflexão podemos então notar não apenas a condição de vida que o Ney demonstra, mas também a da comunidade que o cerca, e de toda nossa sociedade. Todos nós participes inconscientes em maior ou menor grau da destruição do futuro, pelo silêncio e conivência, na questão das drogas, estamos enterrando por nossa covardia, a renovação do mundo. Espiritualmente poderíamos dizer, como convém toda essa situação sincrônica, estamos assassinando Cristo constantemente no suplício da cruz.
   Digo isso não como um subterfúgio alegórico para causar polêmica, mas se entendermos psicologicamente o que vem a ser o símbolo de Cristo no mundo, nossa Personalidade Superior, é isso que definha junto ao Ney na frente da praça da Igreja São Cristovão.
   Costumo dizer, depois que participei de um grupo de ajuda para comedores compulsivos, que ao tentarmos conduzirmo-nos à uma exigido “renascimento espiritual” para nos livrarmos da compulsão, que Deus se revela muito ironicamente em nossas vidas, nos fatos cotidianos. Isso implica aquelas sincronia estudadas por Carl Jung quando do processo psicológico de descoberta e busca pela individuação, algo que deve nos levar à Completude.
   Eu vejo que todo o “Caso Ney” demonstra um pouco disso em nossas vidas aqui no bairro, um processo amplo, uma chance de autoconhecimento, o qual em comunidade não levamos à cabo por estarmos preocupados demais com as “coisas de nossa vida pessoal”.
   O documentário “Pedras, Plantas e outros Caminhos” se centra na explanação do método de Acompanhamento Terapêutico e usa o exemplo do Ney como modo de exemplificar o trabalho que é feito, mas ele fala, pelo menos para mim que me vejo como parte desta história, da situação não só do Ney, mas de todos nós que estamos envolvido nesta história, e por isso me sinto também em processo de acompanhamento pelos doutores, e vir aqui assim refletir e contribuir.
   O método é algo simples, como mesmo exemplifica as palavras finais do vídeo, mas ali estamos lidando com a própria condição humana que carece de ajuda também, e esse é o objetivo final de qualquer iniciativa de ajuda pessoal à um indivíduo.
   Para além do documentário e do tratamento, falo do ser humano em si, não um ator de um filme, mas do autor de sua própria vida, falo do ser humano, de cada um de nós. Grandes desafios e exigências são propostos a nós, coisas que devemos realizar e cumprir, não tanto para com o mundo que não perdoa e pune a brincadeira com o perigo, mas para com nós mesmos, com nossa vida e a forma como escolhemos definir o momento seguinte, nós que podemos quase tudo, nós que temos um potencial existencial tão grande que um vazio do mesmo tamanho se aloja em nós, no velho jogo da consciência tal qual como a herdamos ao nascer nos dias de hoje, dentro da qual volve o consciente e o inconsciente, urgindo por completude, sempre, em todos os casos.
   Rogo para os que me lerem, principalmente os vizinhos e amigos aqui das imediações, onde esse drama se desenrola, que tendemos a nos abrir, a sermos uma rocha firme onde se ancore não só pessoas como o Ney, que andam por aí nas ruas, mas uns com os outros, pois cada um de nós leva dentro de si a dimensão vazia e faltosa que por fim sobrepujou a alma do Ney e que todos nós incorremos em potencial de cairmos assim também.
   Os perigos da queda por causa da indiferença podem atingir qualquer um, vem fazendo estragos em cada casa em qualquer bairro, mal e mal vamos nos dando conta disso. Não falo de um mutirão para ajudar o Ney, ele não é um problema, muito mais ele mesmo é a porta aberta para nossa salvação, pois como na psique, âncora e rocha são dois lados de uma coisa só.
   Não sou inocente em pensar em uma coisa dessa como a tábua de salvação de nossa sociedade inteira, mas pode crer em mim, a coisa passa por aí. Também não me passa pela cabeça em realizar sucessos comunitários assim, mas em potência eles são possíveis, então por que não começar a contrapô-los a aquele vazio?
   Se o objetivo da existência humana, como dizem os gnósticos, é libertar as centelhas do espírito da materialidade, então um dia, cedo ou tarde, teremos que encarar desafios tais, pois nada será deixado para traz, e quanto mais demorarmos a começar a fazer o que autenticamente deve ser feito, mais demoraremos em permanecer aqui adormecidos, sempre acordando tarde dos nossos pesadelos para uma realidade mais terrível ainda. Devemos nós também parar de brincar! Ou a própria vida nos fará parar, como diz Philip K. Dick no final daquele livro: “Fomos obrigados a parar por coisas pavorosas!” (Dick, p.306). E é pavorosa esta situação de vida de um de nós, ali na praça… mas a beleza está lá também, na atitude corajosa de uma terapeuta e todo seu grupo.
   As plantas jazem imóveis, como árvores e construções, elas podem fazer a cabeça, assim como as pedras que calçam o chão aceitam a chuva mansa ou trincam na mente quando sorvidas, mas os caminhos, os caminhos são diversos, e são eles que podemos escolher, os caminhos denotam que ainda temos liberdade.
   Plantas e pedras são dadas, compradas e desejadas furiosamente, mas os outros caminhos dependem de nós escolhermos trilhá-los. Qual escolheremos?
  

-Citações:
Burroughs, William S. ALMOÇO NU. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
Dick, Philip K. O HOMEM DUPLO.  Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
Leão, Emmanuel Carneiro. APRENDENDO A PENSAR, Vol. I.  Petrópolis: Vozes, 1977.


19 de abr. de 2014

O Peixe



O Peixe é um dos animais, quando usado como símbolo espiritual, se torna um dos mais contundentes na vida e na mente humana.
   Esse animal é tratado de maneira diferenciada em várias culturas de diversos povos ao longo do tempo através dos milênios, e comporta em si uma gama de significações profundas, e a primeira vista até contraditórias entre si, para os que não penetram nos mistérios dos significados do Inconsciente.
    Nesses nossos tempos, dentro de nossa cultura ocidental, o Peixe adentra principalmente na figura de Cristo. Mas as pessoas, mergulhadas na cotidianidade fútil, não sabem os “por quê” que os levam a seguir certas tradições, como se alimentar de peixe na Semana Santa, a grande maioria ignora o que realmente significam estas particularidades a nível espiritual ou psicológico.
   O principal simbolismo que o Peixe carrega nos dia de hoje gira em torno das nossas próprias escolhas de vida e no modo final como nossa sociedade, através dessas nossas “próprias escolhas”, se arregimenta e será no futuro.
   O símbolo zodiacal de Peixes denota dois animais, representados pelo ser humano como os concebemos visualizados na Constelação de Pisces, um nadando verticalmente e o outro nadando horizontalmente, ambos ligados por um filamento. A disposição dos dois peixes, quando sobrepostos, forma uma cruz, símbolo da ligação ou inteiração entre o Divino e o Mundano, o Espírito e a Matéria.




Outras representações artísticas deste Signo mostra os dois peixes disposto como se nadassem em círculo em torno de si, como uma ciranda, lembrando o símbolo oriental Tei-gi do Taoismo, mais conhecido como o Yin-Yang.



   Astronomicamente, sabemos que estamos já no final da Era de Peixes, isso quer dizer que durante aproximadamente os últimos dois mil e cem anos o Sol vem nascendo na direção desta Constelação. Peixes é ainda o último mês do Ano Zodiacal, que tem uma duração total de aproximadamente vinte e cinco mil e oitocentos anos terrestres.
   Curiosamente essas correlações tem profundas implicâncias psicológicas, fator esse que tem a ver com a própria estrutura da natureza universal, na qual o ser humano é o ponto mais sensível por ser arrojado de Autoconsciência e pode “captar” as influências ou significâncias impostas desde o espaço exterior onde estão as constelações fixas.
   Um fato também importante em torno disto é que por possuir Consciência de si, o ser humano também possui um lado latente, que os psicólogos designaram de Subconsciência ou Inconsciente, e é por esse “aparelho consciencial” que o ser humano atua dentro do mundo.
   Crê-se ainda que o Ano Zodiacal implica no próprio desenvolvimento do consciente/inconsciente humano, até o seu apice que deveria se realizar em Peixes, passando para o próximo Ano Zodiacal em um patamar superior, assim adæternum ou até se realizar sua função dentro da Natureza.
   O aparato consciencial humano usa então dos símbolos para se comunicar entre suas partes inconsciente e consciente de sua alma, ou psique. Externalizamos desde os sonhos e as visões para o mundo concreto nossos sentidos mais profundos. É aí onde entendemos quando dizemos que “as coisas são mais do que parecem”, ou seja, todos nossos atos, pensamentos e palavras carregam significados psicológicos profundos, e assim é o caso do Peixe, onde denota-se a formação conciliadora ou em direção à completude dos oposto que giram dentro de cada um de nós.

   Na antiguidade, antes da Era Cristã, o peixe era usado como alimento sagrado, por exemplo, no Egito, onde só certos sacerdotes podiam ingerir tal prato. Ao povo Judeu foi proibido pela Lei Mosaica comer peixes do mar, e com o advento do Cristianismo, que sincronicamente iniciou-se justamente com a Era Zodiacal de Peixes, o peixe ganhou um status mais revelador e passou a se girar em torno da temática do peixe e da pesca diversos símbolos espirituais dessa nova crença da alma humana, ressonando embaixo, no mundo, as significâncias das estrelas, acima.
   Nesse período se implicou mais precisamente o caso de se resolver finalmente o “problema do mal no mundo”, e parece ser essa a principal resposta trazida à realidade para um entendimento final sobre a condição humana e Divina também.
   Psicologicamente se nota uma evolução espiritual, da psique humana, à medida que o Sol vai fazendo sua ronda pelas doze Constelações. Agora vivemos sob as influências dos Peixes zodiacais e particularmente nesse caso, imputa-se uma evolução dentro do Arquétipo paradoxal da Completude imbuído dentro de si mesmo.
   Notamos a disposição contraditória dos animais que representam esse Signo do zodíaco, os dois peixes em posições contrárias, mas que em sua união apontam uma totalização, uma completude, expressão realizada no símbolo da cruz que caracteriza a possibilidade da suspenção do ser humano, ou sua essência, entre o espírito e a matéria, é essa a significação real e abrangente, dito muito suscintamente, verdadeiramente proposta pelo Cristo, a união dos opostos para a realização completa da natureza divina do ser humano, e mais, da dimensão real do próprio Ser, Deus, O qual abarca realmente tudo, o Bem e o Mal, a matéria e o espírito, a luz e as trevas.


   Diz-se que o Indivíduo, tal qual concebemos com este conceito e o vivenciamos hoje, só foi possível de existir graças aos ensinamentos de Cristo, na Era de Peixes.
   O desenrolar da “saga” do Cristo para além das doutrinas metafísicas da Igreja, propôs por exemplo, nas Lendas do Graal, essa figura do Herói, como Percival que parte da inconsciência de sua individualidade, em um estado de inocência bruta, até sua atuação consciente como Cavaleiro que serve ao Graal. Podemos ler dentro da estória de Percival uma evolução espiritual, a qual caracteriza justamente os passos do ser humano rumo à sua autoconsciência.

   Ao longo do tempo, depois do advento histórico, ou mitológico, do Cristo em Jesus (o Arquétipo do Herói de nossos tempos), os seguidores dessa crença se voltaram para as significâncias de Luz e do Bem nos símbolos e ensinamentos Cristãos, e o mal foi relegado à sentidos muito deficitários e insatisfatórios para explicar a realidade cotidiana. Desenvolveu-se o dogma teológico que o Bem era Deus, e o Mal era apenas uma característica basicamente humana, isso psicologicamente teve nefastos efeitos, pois a psique, a alma, não aceita desequilíbrios. Em nossa economia interior tudo deve se desenvolver em harmonia, e ao longo dos últimos dois mil anos, a mente procurou de todas as formas compensar o excesso infinito de Luz e Bem que é o Deus Cristão, manifestado no mundo em Seu filho Cristo, em um antagonista que comportasse também um excesso infinito de Escuridão e Mal, que foi finalmente apelidado de Diabo, assim surgiu a imagem do Anticristo na consciência das pessoas.
   Podemos constatar que tal desenvolvimento já estava “escrito nas estrelas”, há de ver a conotação da representação do Signo de Peixes. Porém do modo como aconteceu, o que reconhecemos é que a Igreja encobriu a faceta negativa das disposições simbólicas de Peixes, voltando-se estranhamente para o lado positivo apenas. Poderíamos dizer que isso é humanamente explicável, pois queremos sempre o que é bom, mas justamente isso não é humano, pois a psique implica em um movimento de abranger a tudo, não só uma parte.
   Para nosso prejuízo psicológico, comportamental, filosófico e social, a coisas prosseguiram no rumo que deviam ir, mas desequilibradamente.
   Nosso mundo atual, repousa sob a influência do final do lombo do peixe horizontal que é o Anticristo, e é justamente esse o peixe usado entusiasticamente nos adesivos em veículos automotores e como símbolo de muitas igrejas cristãs. Adotamos inconscientemente os impulsos anticristãos.
   Nossa sociedade, nosso estilo de vida, nossa espiritualidade, refletem todos, o próprio contrário do Cristo, ou melhor, sua compensação psicológica na mente e na vida humana, e quanto mais em nossa espiritualidade tentamos perpetrar com palavras o Amor de Cristo, mais vamos realizando em atos o desamor do Anticristo. Sucumbimos à “massa”, ao rebanho, símbolo tão caro aos cristãos, e o rebanho é a dissolução da individualidade.

   Por que é assim? Porque esta é a natureza da alma. E agimos e reagimos na realidade cotidiana a partir destes elementos porque faz parte de nossa formatação psicológica buscar o equilíbrio que deve manter nossa sanidade, nossa saúde mental.
   Séculos de imposições psicológicas e físicas feitas pela doutrina cristã através de dogmas onde um Bem infinito e um Deus de plena Luz, impossível até de ser concebido, é então equilibrado por um mal generalizado na sociedade, no mundo, onde de repente somos apanhados boquiabertos diante de uma violência desumana e uma frieza pessoal ou governamental do Estado que prescinde de qualquer alento Cristão que o povo busca em sua espiritualidade comunitária.
   Como pode , por exemplo, uma nação dita cristã, que concebe-se firmada na liberdade de escolha democrática, deixar prosperar tantos desmandos e corrupção sem mudar nada politicamente ao longo de séculos?
   Nosso sofrimento pessoal e social é o preço de nossa ignorância espiritual das coisas como verdadeiramente são, recalcados que somos por dois milênios de inverdades comodas que serviram para implantar o bem-estar social apenas para alguns. É como assevera Carl Jung:
   “O cristianismo, por seu lado, insistiu na bondade de Deus como Pai amoroso e tentou, pelo menos, privar o mal de qualquer substancialidade. A profecia do Anticristo, feita na Igreja primitiva, e certas ideias da teologia judaica tardia, porém, poderiam estar indicando que falta ainda uma premissa menor na resposta cristã ao problema de Jó, premissa cuja realidade sinistra a divisão do mundo em dois blocos coloca-nos ameaçadoramente diante dos olhos: a supressão da imagem divina é seguida de perto pela anulação da personalidade. O ateísmo materialista forma, com suas utopias quiméricas, a religião daquelas correntes racionalistas que fazem a liberdade da personalidade depender da massa, com o que a destroem. Os representantes do cristianismo se consomem com a mera conservação do patrimônio recebido, sem dar continuidade à construção da própria casa, para torná-la mais espaçosa.” (in “Aion”, C.G. Jung – O.C. 9/2 §170 - Vozes).
   Jung fala aqui a respeito do materialismo, do ateísmo, do socialismo e até da ditadura fascista, mas podemos estender sua crítica também ao próprio capitalismo e ao cristianismo voltado para a prosperidade econômica, o qual subverte tudo à massificação, mesmo acalentando a exacerbação da personalidade e da individualidade.
   De tal forma, o significado psicológico e profundo do Peixe e da pesca, que deviam, entre outros símbolos, efetivamente serem desenvolvidos na Era de Peixes não foi realizado pela alma humana, e nosso mundo se tornou o que é. Houve uma cisão completa entre dois lados que deviam ser complementares.
   E qual é este sentido não realizado? Ele se encontra entre os anseios e crenças de grupos estigmatizados, perseguidos e eliminados, crenças esquecidas ao longo da História do Ocidente, como o Gnosticismo e o próprio demonizado Judaísmo, tanto espiritualmente quanto politicamente. E sabemos que Judeus e Gnósticos são as raízes espirituais do Cristianismo!
   Rapidamente, sem apontar as fontes, visando praticidade, poderíamos descrever essas visões e anseios espirituais da seguinte forma: dar conta de nossa natureza significa entender a natureza do próprio Deus, que do Antigo para o Novo Testamento revela uma transformação em Sua própria personalidade Divina, coisa inconcebível para os cristãos de hoje em dia. A cruz de Peixes, na qual se ergue o símbolo encarnado do Si-Mesmo (Deus), comporta a personalidade do ser humano moderno (o Cristo), essa cruz é um anzol, no qual se engata uma isca, um peixinho, com o qual se deve fisgar outro animal, o Leviatã, a representação posterior do inimigo de Deus.
   Na verdade o Leviatã é uma espécie de Super-animal que Deus criou, uma expressão externalizada de Sua própria Sombra, Seu lado negativo, pois como, e até infinitamente mais, que o ser humano,  Deus é Completo (esse é o sentido de nossa própria psique urgir sempre rumo à completude em suas volições, pois carregamos dentro de nós uma Centelha Divina).
   É a carne desse super-animal peixe-ave-terrestre, o Leviatã, que Deus preparou para ser servido no Banquete dos Justos, ou dos Perfeitos que ascenderão ao Paraíso no final da História, ou da Era de Peixes, que está se encerrando, como se fosse uma compensação para todos os sofrimentos não merecidos infundidos pela nossa passagem pelo mundo material e os esforços de alguns para serem seres Completos. Fisgado com a isca Cristo no anzol-cruz, a carne deste “peixe” é pura, e alimentará esses Santos.


O Banquete dos Justos (Bíblia Ambrosiana). Acima o Leviatã nas águas
de onde é pescado, e abaixo os Perfeitos, em imagens terriomórficas,
expressando a completude entre o humano e o animal, cheios de
dignidade, no Paraíso, apreciam a refeição.

  

    O Leviatã que posteriormente na filosofia ganhou um interessante sentido político no qual podemos refletir sobre a “esquecida” função histórica evolutiva da mente na Era de Peixes.
   Ao longo da era Cristã construímos o Reino do Anticristo, nos dia de hoje o Leviatã, que é o símbolo moderno do Estado, de nossa sociedade, pode estar finalmente preso no anzol espiritual, e talvez tivéssemos assim a chance de devorá-lo, ou seja, temos escancarado diante de nós, na ruas, nos jornais e na TV, tudo aquilo que devíamos transformar no mundo, mas será que temos coragem e força psicológica para realizar esse desafio? Ou caímos definitivamente na armadilha da “anulação da personalidade” que Jung apontou, e é irreversível nossa “supressão da imagem divina” e consequentemente, de nossa personalidade? Ou seja, o plano de Deus para Ele próprio deixar de ser o deus dos exércitos do Antigo Testamento e ser o deus de amor do Novo Testamento não vingou de forma plena, ou foi bem sucedido, dependendo da interpretação.
   Espiritualmente falando, os Gnósticos por exemplo atestam que as coisas não ocorreriam como as pessoas comuns, cheias da doutrina do Deus Eternamente Amoroso quisessem que acontecessem, que o mundo seguirá seu destino, que é ser entregue aos pacíficos, como se diz no Sermão da Montanha, e que a materialidade subsistirá sem o ser humano, pelo menos esse “ser humano moderno”. Os Judeus mesmo esperam ainda o Messias, ou o Messias filho de Davi, que virá, segundo seu misticismo medieval, depois do Messias filho de José.
   E nós, que apesar de toda nossa indignação e abismamento diante da violência e da corrupção, parece mesmo que a indiferença e o egoísmo são maiores e mais fortes como guias de nossas vidas e mente, o que impediu de realizarmos os impulsos da Era de Peixes no mundo real. Aparentemente nós falhamos, falhando em parte Deus também.
   No final, o que se dá no caso do Leviatã é uma concepção muito mais profunda e radical, à qual nossas psiques educadas pelo cristianismo não permite pensar por medo e desinformação, essa concepção por si só sinistra e quase incompreensível para a alma das pessoas atuais, se é que hoje tenhamos alma, é a idéia do Mal combatendo o Mal, assim como que, com um peixe, pescamos outro peixe.
   No plano Divino podemos dizer que se realizou seus objetivos, Ele pescou o Leviatã, agora o mundo será abandonado à ignorância, ou à inocência, e no outro mundo os Perfeitos comerão a carne pura do Leviatã, enquanto os que aqui ficarem desfrutarão o banquete do mundo que construimos até submergirmos na anulação. E assim o mundo cumpriu sua função aos olhos de um Deus Uno.

   A Páscoa, data Cristã da ressurreição de Cristo implica um banquete terrestre da pesca espiritual, do Herói que desceu ao Inferno, apanhou ali Adão e demais Justos, e os libertou do mundo material.
   Essa data anual, simbolizava antes a festa pastoril em comemoração à chegada da Primavera, onde vemos se refletir então o Mito grego de Deméter que foi resgatar a filha Persefóne do Mundo Inferior (Infernus) de Hades, e ao voltarem ao mundo da superficie, a natureza volta a florir na Primavera. Coisa que por um trato entre os deuses, arquétipos dos fatores psicológicos humanos, acontece periodicamente, pois Persefóne (Coré - Cristo?) agora pertence ao mundo inferior, como esposa de Hades, onde passa as demais Estações do ano.
   Significante também é o termo “páscoa” ter derivado do Pessach judaico, sua comemoração da fuga do Egito, e sua terminologia ser tão próxima à “pesca”. Na tradição cristã católica então nós realizamos o inverso, comemos o peixe na Sexta-feira da Paixão, e no Domingo de Páscoa distribuímos os ovos, símbolo pagão significando mesmo o renascimento, uma prova da confusão mental instalada no mundo.



   Agora os eflúvios da Era de Peixes vão se desfazendo, a marcha do Sol segue apontando as estrelas exteriores, e logo amanhecerá uma aurora na Constelação de Aquário, e talvez as águas do Inconsciente, que até então eram um mar onde se pescava em fartura os peixes dos símbolos transcendentes, se torne um recipiente fechado onde se depositam apenas alguns espécimes particulares de animais aquáticos, belos e estranhos, como se parecem os ideais zelados de uma Nova Era vendidos nas lojas esotéricas.
      Mas não podemos nos deixar enganarmos pela segunda vez seguida em duas Eras. O espírito humano precisa se precaver quanto a mais um erro de interpretação autoritária das necessidades da alma como o fez na Era Cristã de Peixes. A Era Cristã de Aquário vêm, invariavelmente, sendo pavimentada pela alienada euforia rave, pelos livros de autoajuda, pelo ocultismo, o erotismo e o falatório estagnado evangélico. Estaríamos germinando uma Primavera de entretenimento ou um jardim suspenso de novas falsidades?
   O símbolo do Signo de Aquário não é nosso conhecido objeto usado como viveiro de peixinhos ornamentais, mas é a de um ser humano entornando as águas de um cântaro, que representa a Constelação do Aguadeiro, o que nos leva a pensar que o  impulso estelar seja enfim o de entornarmos no mundo nossas águas interiores, queira nossa sorte, sejam águas harmônicas, ou pelo menos, a dispensa das águas estagnadas que zelamos na psique durante toda a Era de Peixes.
   Curiosamente poderia estar despejando água sobre um peixe que encontrou sob a terra primaveril da nova Estação Zodiacal, o Cristo de Aquário? Afinal, na Bíblia, quando perguntado pelos discípulos onde o encontrariam depois de sua partida, Cristo respondeu que deveriam seguir um homem que encontrassem na entrada da cidade, carregando um cântaro sobre os ombros.



   O Aguadeiro comporta também o inicio de um Ano Novo Zodiacal, ao qual adentramos com a consciência mais elevada, diferente da ronda anterior, caso consigamos escapar imunes aos “gritos e gemidos de parto” (cf. Paulo, na Bíblia) que anunciam guerras fatais por todo o globo, coisas impensáveis para o nível científico e de desenvolvimento social em certas partes do mundo, mas que todos sucumbem também à premissa do Anticristo.
   Parece que em Aquário essas alternâncias paradoxais do espírito, de Deus e da alma humana serão de alguma forma resolvidas ou até mesmo superadas, e esse é o trabalho incessante da alma humana ao longo das Eras, zelar do peixinho que é o ínfimo de ligação entre o espírito divino e o corpo terrestre, até que nos seja possível sermos seres equilibrados dentro desse mundo, e podermos um dia provarmos do banquete do Peixe Sagrado nas paragens astrais que Deus urdiu para receber de volta a mônada que vivificou o indivíduo humano.