Adivinhação

 

Eu delirei
   um poema
De versos
   sem rima
& palavras
   desconexas
Ligadas à força do acaso
Que só
   muito
      de longe
Alguém leria certo
Com sorte
   & adivinhação

Assim como a vida nossa
Cheia de vagas & dias de sono
Cheia de dores & fatos desapercebidos
Do mesmo jeito que passa os dias
Não enfileirados
Mas calçados pela fantasia
...que tudo está normal
   & segue firme sua sina...

Acordei
   com o desejo em pé
& sussurros
   certeiros
      me ensurdecendo
Atravessando o sonho que acabou
& era dia
   mas não era
Era canto
   mas silêncio
Era frases
   sem ecos
Um refrão
   para resto

Assim como nossos casos
Cheios de falta de sentido
Cheios de grandes vazios
Do mesmo modo como voltamos à noite
À procura de desequilíbrio
Que justifique nosso esquecimento
Que a vida é passageira
...mas que é eterno nossos erros
   enquanto estamos aqui tentando acertar...

Uma palavra
   ao acaso
Como reza
   para caos
Que ainda não percebemos
   pois amamos
      & não somos retribuidos
& gastamos nosso tempo
Antes de repetirmos
   nossa vontade de ser
      indecifrável
Porque somos confusos
   & passíveis de errar
Enquanto pensamos
   saber tudo
      & não mudar nada

solventia

 

Caminho (Pedra Pisada)

 

Eu sou esse caminho de terra molhado
Sou o barro que jaz
   ali, parado...

Todo homem nasce pedra bruta
   & vai se diluindo
Pela força do tempo
   pela pressão dos pés
      sob a lima do vento
         & os fatos da vida...

Da pedra bruta se esculpe monolito
   os restos cascalhos de um simples delito
O monumento com o tempo derrete
   até ser seixo no fundo de um rio
O garimpo leva o que ganha de ouro
   tudo de precioso carregado pela vida
Até ser só areia espalhada num campo
   cujo único carinho que tem
      é se afogar pela chuva...

Que sirva de senda para pés perdidos
   por entre as matas que abraçam o rio
Eu sou estrada trilhada & batida
   rumo a lugar nenhum
Que perdeu as ilusões da pedra talhada
   não compus muros
      não fui casa calhada
Descansei no chão
   de uma senda repisada...

Mas sou dono de mim
   extensa estrada
Sem começo
   sem meio
      com o fim
         de ser temporaria estada...

No meio do mundo
   estrada encharcada
Com o peso da água
   dos pés & das lágrimas
Estrada sem encruzilhada
   só rumo, sem ninguém nem nada...

Se eu chegar
   chego pela vaga
Sem poeira, mas lama grudada
   nos pés como experiência
      de quem por mim passou
         & não deixou pegadas...

Quem pisou em mim
   quem chorou em mim
Por aqui só passou
   ser pedra moída é assim
É trilha é caminho
   que ninguém trilhou
      até o lugar do 'sim'
Onde as pedras de novo se juntam
   para ser um fim
      & um princípio, enfim...

Outrolados

 

A estrada
   lisa rugosa
      reta sinuosa

Fala da viagem
   antes do destino
Fala da paisagem
   antes do infindo
Silencia a ida
   & não sugere retorno

Estadia
   sempre tardia
Jornada
   por entre o nada
Rodagem
   nessas paragens
Horizontes
   rolantes

A estrada basta
   & repara o estrago
Basta ir
   & um dia chegar...

Senex (II)

 

Fui acordando nesse mundo
   faminto, fraco
      ignorante, burro como uma pedra
A escuridão & a luz
   me empurrando um para o outro
      & as mentiras só aumentando
No jogo de soma zero
   fui escolhendo no que menos acreditar
      para no final inventar minha própria verdade
Só tarde, muito tarde
   compreender a dura realidade
      de tudo que não faz falta
Acordar para dormir
   nascer para morrer
      esforçar inutilmente
Luz que gera sombra
   sombra para carecer de luz
      ver para ser iludido
Matéria diluída
   energia condensada
      dispersão generalizada
Materialidade espúria
   falácias de espiritualidade
      desespero da causalidade
Fui adormecendo nesse mundo
   beber do Lethes antes de nascer
      beber do Lethes antes de morrer
Faminto, fraco
   mas nutrindo-me
      do veneno do Éden
Ignorante ao ponto da iluminação
   átomos de pedra
      programados para a explosão
A escuridão & a luz
   jogando comigo
      eu não sou o prêmio, sou o dado que rola
Hora no colo que acolhe
   hora rastejando no chão com as serpentes
      outras no vazio à espera do caos
O amor só me trouxe a embriaguez
   o profundo desejar a vontade de esquecer
      & no final de cada caso a certeza
         de que quem não usa é usado

Esses Caos

 

O mundo parco & de coisas reais
   incomoda a carne com promessas de completude
      & o querer das coisas novas
   nos incorre em risco em nome do desejo
      porque precisamos de sempre mais
Esse caos chamamos querer...

Eu não consigo cair no esquecimento
   toda queda é reviver na vertigem
      o que passou & se repetirá na memória
   aprisionados no inferno das ausências
      que falam da outrora presença
Esse caos chamamos lembrar...

Dentro de toda essa confusão
   zelar do caos que nos atravessa
      & ajuda na travessia torta
   ferindo cada parte do corpo
      para fazer da vida uma coisa única
Esse caos chamamos amor...

Boca da Noite

 

A cidade a cada dia
   cada vez menor
      engolida pela boca faminta da noite
A escuridão cerca
   & o céu cada vez mais baixo
      nos espreme na inexpressão
Temos que cruzar territórios inóspitos
   para chegar à outros lugares
      irrisórios & distópicos
Vazios, valas, nadas
   entre onde estamos & onde vamos
      nos perdemos & rachamos
A cidade a cada noite
   anoitece como os corações
      ocasos ao acaso por entre as casas
Cercados, invadidos, inválidos
   pelo nada que nos cercam
      até o fundo do poço
         dos corpos em trânsito
Esperando cada um
   ser comprimido entre dias & noites
       & corrompidos pela solidão
           que nos cerca & acerta
Entre escuros & claros
   frios & fogos de luzes & jogos
      que derretem a cidade
         & a carne que uso pra ir & desvir

Encerramento

 

No nada
   pós tudo
A luta é permitir-se entender
   que o nada em que repousamos
      distingue-se do tudo que nos dilacera...

Eu entendo
    tendo a entender
Não eu
   nem você
Mas o caso & o ocaso que tivemos...

Luta interna
   por aceitar & amar isso também
Ter a maravilha & a catástrofe
   do se ter... & não ter...

Como podemos comportar tudo isso
   & ainda seguir... ?...

Eu só sei do meu lado... & aqui
Você me deixou a dor
Você me deixou os vícios
A loucura do desejo
& o gozo livre em abraços com a morte
Você me deixou o ódio
Você me deixou a embriaguez
A lembrança da inconsequência
& a vontade de esquecer...

Como podemos suportar tudo isso
   & ainda perseguir... !...

Desistência interna
   em rejeitar & amar isso também
Ter a maravilha & a desgraça
    em um ser só... & não ser...
  
Assim... disso que não termina
   mas já acabou
Eu quero o encerramento
   & pago a oferenda
      o tributo da destruição!

Apagão

 

Acaba a eletricidade
   a cidade do mesmo jeito fica
É o escuro no claro
   que nada certifica
Tem luz no ar
   para além das lâmpadas
Ainda há luz em nós
   nos olhos & no coração
Acabou a eletricidade nos fios
   mas no corpo estamos vivos
Movendo, falando, urdindo
   conexões que não precisam de máquinas

 

Senex

 

Está todo mundo ferido

Machucado

Sem saber da ferida

& sem cura...

Ou só uma cura:

Outro Alguém...

O sentimento mal disfarçado
Engolidor de mundos
Destruidor de mentes
Dentro das noites
Arrastando nos dias
Embriagado
Em alta rotação
O sentimento que não damos conta
Que nos falta
Nos completa
Nos arrasa
O lixo & o luxo da existência
A fome do lobo
A violência do tubarão
O frio das eras
A loucura do coração
A coisa irrefutável
Escondida diante diante nossos olhos
Que nos fazemos de cegos
Vendo tudo
Fugindo pra encontrar
Em um tempo tardio
A morte & a paz

Esse pedaço de carne

   que te pertence

É tudo que outro quer...

Essas almas

que desconhecemos

que querem se consumir...

Saudade/Saúde

 

"...Quando eu era criança, eu tinha febre

Minhas mãos pareciam dois balões

Agora eu tenho esse sentimento mais uma vez

Eu não posso explicar, você não entenderia

Não é assim que eu sou

Eu me tornei confortavelmente entorpecido..."

-R.  Waters, D. Gilmour em 'Comfortably Numb'

   Serti-me doente às vezes me remete aos dias da infância, quando, febril ou indisposto, o corpo se arrastava pelo dia como uma esponja se encharcado à medida que afunda nas águas soníferas do tempo...
   Interessante as lembranças desses dias ficarem como reminiscências marcantes ao ponto de hoje, enfermo ou convalescente, a memória me remeter à eles... ao sabor daquele sol sobre a testa febril, a mente torpe, o corpo quente se deslocando contra o vento fresco, o mundo em volta que não para nem diminui o ritmo, apesar do meu mal-estar...
   É que foram esses os primeiros desabores da morte, foram as primeiras fraquezas do corpo reveladas, limites contra os quais a criança então foi iniciada às fraquezas físicas, daquilo que podia fazer e ao sentido findo da existência...
   As febres, as dores de garganta, a cachumba, as gripes, encefalite, as dores de dente, intoxicações,  as infecções diversas, alergias... todas repassadas agora quando o corpo sofre de novo o ataque de enfermidades... a memória retorna aos dias em que a ausência de saúde era uma punição para a criança que tinha mais dias pela frente do que o velho, que agora, tem mais dias que passaram, & não voltarão como aquela saúde natural depois anormalidade de um dia ruim...
   A memória, doente de tempo, como o corpo de patologias, retorna, desliza entre o aqui & lá, como que recitando uma velha palavra, que não é "saudade", mas sim, "Saúde"!

Devoração

 

Há uma enorme fome
   abaixo d'água, dentro dos rios
   no fundo dos mares, no céu azul
      entre todos os animais
      dentro de nós
Uma enorme fome no mundo
   abaixo da consciência
   nos pensamentos, na carne,
      átomos, estrelas
      & nos buracos negros
Milhões de mundo
   zilhões de bocas & vísceras vazias
   prontas para devorar à tudo
      & a si mesmas
      em um banquete parco
Dorme conosco & desperta de novo
   o estigma de tudo que está vivo
   fome perene, dos olhos até a sombra
      apetite que sobra incompleto
      pela falta que mata
& há hordas que digam, sintam
   que não temos culpa
   se podemos plantar & colher
      se podemos abater
      & com fogo & com sal tudo melhorar
Em fome, disforme
   a necessidade, informe
   querência, disparidade
      entre o limite do corpo
      & o infinito da vontade

Agosto

 

Ok!
Você escolheu a opção
   entre a única que não te deram
Então!
Foi a escolha sua
   sem a interferência de ninguém
Agora!
Optar por não mais estar aqui
   não é mais uma opção passageira

Andamos um pouco
   ao lado um do outro
Pra saber
   que em volta nada melhora
& quando vem uma coisa boa
   vem outras mil pra te fuder

Paramos nas encruzilhadas
   para olhar antes os caminhos fechados
Nós só tivemos mesmo
   uma conversa importante
No começo, quando admitimos
    que estávamos no inferno, antes de tudo

Seguimos, vivos & meio mortos
   esperando a grande sorte que desconhecemos
Fomos firmes, em nossa ignorância
   como se não saber fosse felicidade
& atravessamos esses tempos
   até os espaços que nos acomodarão
      como cadáveres
         no fundo do poço de água limpa
Como algo novo no ar
   depois dos ventos de agosto

O Que Somos

 

Luz & Sombra
   giram em torno de nós
Mas nós mesmos somos o quê?
-Nem luz nem sombra
   abraço do fogo, impacto da escuridão...
Somos o que somos
   & é o que basta
      na nossa carga de incompreensão
         sobre tudo que nos cerca!
Nós não somos nada disso
   que pensamos ou nos enganamos
      que somos...
Não somos ou seremos nossa fome
   nem nossa solidão,
Não somos nem seremos nossa beleza
   ou feiura,
Não somos nem seremos a luz do mundo
   & nem sua escuridão...
Somos nada
   mas não sabemos disso;
Somos tempo, espaço, abismo & caos
   & tudo mais o que basta
      até o fim desse circo
         onde estamos exilados!

O Que Se Rasgou

 

Varre o pó dos meses
   o buraco negro de nosso tempo escasso...

Suga como devassas loucas
   que não compreendem nem o seu porque
      de desejos de consumação
         diante da porta do abismo...

...eu às vezes penso
   se um dia será possível
      viver nos sonhos...

Enquanto isso
   deito a cabeça no colo da embriagues
      & amaldioçoo cada pesadelo
         em forma de corpo
            que cruzou meu horizonte...

É que nos abismos
   não há portas
& sabemos que entramos neles
   quando já estamos caindo...

Enquanto os outros
   espalham por aí bênçãos
      como se fossem ervas daninhas
Eu ainda compartilho contigo
   o vazio do abismo que você rasgou...