Reta Curva

 

Não faço playlists
   ou listas afim
De repetição já basta a vida
   & o que o eterno retorno traz pra mim

Eu volto sempre & visito
   momentos únicos eternamente repetidos
Não há descanso imprevisto
    não há sequer um momento revisto

No círculo incontesto do tempo
   não há nada rápido ou lento
É tudo um eterno momento
   sem tirar ou por um só alento

São lembranças de coisas vividas
   são saudades de momentos imaginados
Na fúria vazia de partes esquecidas
   da vida que podíamos ter nos amado

Decanto

 

Vou deslizando
   por entre as rochas do tempo
Nem a dureza nem as pontas afiadas me ferem ou detém...
Vou penetrando por entre as brechas
   irrigando pedregulhos, seixos & sementes...
& quem não quis andar comigo  
   sob a aridez do espaço ficaram & diluiram
Assolados pelo sol
   pela solidão que não me seguiu...
Eu fiz meu lar por entre as pedras
   me espalhei como sonho no vazio
& me agarrei como raiz à pedra rara do meu coração...

meta de nada

 

                antes nada                        do que metade

meia vida

meio amor

meio quente

meia presença

é morte,

indiferença,

frio,

ausência

Mundano

 

Hoje eu quero
   Ir aos lugares mais sujos
      & me limpar com a presença dos caídos
Hoje meus pés
   Afundarão na lama
      & eu estarei puro
Hoje
   O passado
      Não estragará meu presente

Estarei onde não tem luz
   Vivendo do meu fogo interno
      Que nem você apagou
Estarei onde não tem calor
   Derretendo o gelo eterno
      Que você me ensinou a fazer
Estarei colhendo antes de plantar
   Os desejos que nunca tive
      Para saber como é ser nulo

Caminharei como quem para
   Para ver a morte passar
      No seu carro fúnebre pré-histórico
Caminharei como quem se perde
   Na terra arrasada
      Depois da tempestade do des-amor
Caminharei como quem já sabe voar
   & só anda ainda para devorar carcaças
      De delícias que se decompõem no chão

a.

 

Assim como
   seu nome breve
Curto de ponta a ponta
   aponta o fim
Para ela o tempo
   corria mais rápido
Em queda livre
   s   i    e    e   m
   e   n   m   s   o
   x   d   b    q   r
   o   i    r     u   t
        f    e     e   e
        e   a     c
        r    g     i
        ç    u    m
        a    e    e
              z    n
                     t
                     o
Eu sabia porém
   como quase um desejo
      que ela estava impune ao carma
Então, até que tudo
   se tornasse demência
      anátemas & anacroasia
Ela me enlouqueceu
   antes de enlouquecer... mais
Ele me iluminou
   antes de se consumir... mais
Com sua presença breve
   & sua ausência perene

Murmúrios

 

Eis quando tudo que só resta são palavras despidas de atos...
      ...despi de atos...
   Eu custo entender a noite que condena tudo ao esquecimento...
      ...esse desaquecimento...
   Eu custo me por no lugar que devia estar o desespero...
       ...eu espero...
   Tenho delírios de retornos eternos do que nunca vi, nunca fui, nunca tive...
      ...reentorno nu...
   Tenho desvios de euforia decaindo nos braços de quem me desanimou...
      ...desvi... desamo...
   Campos-corpos que acolhi no meu peito como se fosse a jóia mais rara do buraco negro...
      ...estrela congelada...
   Eu recuo na velocidade do congelamento do coração que para de bater por outro & simplesmente perco-me...
      ...calo-me...
   & ouço o coro do céu que cai rasgando a garganta para gritar a canção do recomeço do zero...
      ...oro... ouro... erro...
   Acho que isso tudo não irá remendar um homem rasgado...
      ...raso ...fino... ferido...
   Nem palavras nem atos nem a noite nem o esquecimento nem o desespero nem os delírios...
      ...lírios ...corpos-campos...
   Porque depois de tudo, ainda há beleza no campo selvagem do corpo que sobreviveu...
      ...terra vasta ...peito de vasta rasa cova...
   É na solidão que tudo morre & tudo recomeça...
      ...pela metade ... pelo necessário...
   É sozinho que tudo acaba, a vida, o eco, a dor, a vontade, o amor...
   & volta... & volto...

 

EncontrAr

 

Hoje eu perdi
   uma frase linda
      que estava na ponta da língua
Evaporada quando seu olhar
   cruzou com o meu
Sem fôlego
   toda rua se encheu
      do seu perfume
Me dando do seu olhar o ar...

III

 

O Tempo Desconjuntado

 

Quão longe é...
Quão longe está...

   Eu & você...
   um   do  outro...
   no    mesmo    nunca-lugar...

...a flor que se foi ou ainda virá
       quando a época chegar...

Quão longe está...

No tempo, espaço ou o que virá
   Quando o próximo dia nascer
   Quando a próxima chuva cair
   Quando nós não mais nos lembrarmos

...quão longe é

          estar no mesmo lugar
                mas não estar...

Pode se perder no caminho
Pode se perder no tempo

   Estradas, estadias

       Estações, abandonos


            Estrelas, nortes, noites...


...quão longe ficou

   o que era antes
      o que se foi
         & nunca passou...

Quão longe é
Aquilo que será

   Por onde virá, virá de onde
   Do achado, do perdido
   Inventado, desejado, renegado

...o tempo desconjuntado
      no lugar não encontrado

         de onde, ainda, tudo que não veio, virá...

Onde é...
Quando está...

   Lugares lunares
   Onde o tempo & espaço faz
   O que será percorrer distâncias

                                                         para chegar





                                                                      aqui   .

Cardionimal

 

Só há um animal
   que não tem osso
      carne
         ou espírito...

Que tipo de animal perdido
   sofrido
      abandonado
         é nosso coração?

Sempre esperando o dono voltar
   esperando a hora de matar a caça
      esperando o momento de se vingar
         esperando para amar...

Besta de carga pulsante
   sem saber o porquê
      inconscientemente explodindo
         batendo em si mesmo!

Que tipo de animal sanguinário
   apaixonado
      enlouquecido
É nosso coração?

Animal carente & independente
   preso na gaiola do peito
      acorrentado à outro coração
         batendo até no fundo do poço...

O coração é um ser
   que involuiu do oceano
      & se fez animal
         pra morar no deserto do peito...

Animal solitário & desesperado por companhia
   sempre à procura de outro igual
      que se acasalam mas não procriam
Cada um dentro de seu cárcere privado!

Que tipo de animal fodido
   resistente
      alucinado
É o nosso coração?

Fera domada
   selvagem
      covarde
         heróica
É o coração de cada um...

Animal estranho
   exausto, mas incansável
      bondoso, mas destruidor
         solar, mas noturno...

Que tipo de animal
   é nosso coração‽

Ruptura/Rasgamento

 

Separados pelo tempo
Por um nada cravado na coluna
   invertebrada do amor deficiente de perseverança
Afastamo-nos
Moluscos espinhosos
   no mar amargo tempestuoso da vida

Arrastamo-nos lentos
Para longe um do outro
   levando tempos arrepiantes para chegar de novo no fundo o poço
& blindados de indiferença
Menosprezamos a luz
   que insistia em nós fazer gozar

Caindo no esquecimento
A poeira da insanidade
   não consegue cobrir nossos corpos esponjosos que secretam infelicidade
& finalmente decantados
Um em cada canto do mundo
   céu & inferno se destroem mutuamente em disputa pela nossas almas

II

 

a liberdade
está dando
  uma grande
   dor de cabeça
    à democracia

Será liberdade?
Será democracia? 

I

 

O corpo
   é inconsciente
      de suas enfermidades...

Irremediável

 

"É possível se dançar sobre vidro quebrado durante um certo tempo..." (Pale Blue Eyes)

É possível
Se estar de pé
& andar por aí
& falar banalidades
Mesmo estando
Com o coração em pedaços
Espalhado dentro do peito
& vazando pelos olhos
Pelas palavras & gestos
É possível... durante certo tempo...

"Os mortos nos assombram porque os amamos pouco..." (Pale Blue Eyes)

Os vivos nos assombram
Porque os amamos errado...
& o que importa
Se alguém não dá valor
Naquela coisa única que se encontra
Uma só vez na vida...
Há os que sabem apreciar & guardar
Algo que se encontra uma só vez
Em um milhão de vidas...

& se passa ileso
Por situações que nos levam a constatar
Que tudo que urdiu nossas vidas
Encontros & despedidas
Está tudo errado
& o certo é o simples ato
De amar... da única forma possível...

<--•-->

 

Novamente nesse ponto
   Sem nada a dizer
No fosso sem fundo
   Da fome, da saudade, da falta
Do que nem se sabe o que...

Será liberdade?
Será escravidão?
Será nada disso ou tudo junto?

A carne que nós falta
   Não é a nossa carne
A falta que nos faz
   O que se tinha & não tem mais
Aquilo que veio & se foi
    É o que não tinha que ficar
Ou sequer vindo...

Mistério da atração!
Revelação da gravidade!
Aprendizado da entropia!
Abençoada... vida... que... segue...!

Bora...

 

Bora...
Pensar com os pés
Agir com os pés
Amar com os pés
Vambora...
Levantar
Caminhar
Encontrar
Bora...
Se erguer
Se mover
Se proteger
Embora...
Carregamos nosso peso
Pisamos em espinhos
Tropeçamos no caminho
Bora...
Saltar no abismo
Pisar na serpente
Correr para o voo
Vambora...
Pra longe da confusão
Pra estrada que não acaba
Pra perto do coração
Bora...
Saltar a pedra
Levantar a poeira
Abrir o caminho
Vambora...
Rumo à fronteira
Rumo ao desconhecido
Rumo ao abraço
Bora...

2023