22 de dez. de 2014

A Gnose do Coração



   “Aquele que pode ser ele próprio, não deveria ser outro”
Paracelso

   Conhecer o que se crê não é fé, é gnose.
   Os caminhos da alma sempre foram verdadeiramente tortuosos. Ao longo da história humana, este istmo de consciência que chamamos alma sempre buscou se compreender, sempre buscou de uma forma ou de outra lançar um olhar sobre si mesmo, e isto foi o que ficou conhecido ao longo do tempo como espiritualidade, e quando isto foi deturpado, manipulado por grupos, conheceu-se o que chamamos de religião, as mais deslavadas mentiras de todos os tempos e lugares.
   Isto porque o conceito de religião sempre foi pomposamente apresentado às mentes incautas e sedentas de sossego como “religação”, no caso, à Deus. O velho e surrado “religare” nunca dera liga real, porque a premissa da qual sempre partiu é falaciosa, ou no mínimo pretensiosamente manipulada com má fé alheia.
   Isso se dá porque se realmente tivéssemos compreensão do que seja Deus ou o Sagrado, veríamos, como um gnóstico sempre viu, que nunca estivemos “desligados” de Deus, porque nós somos em essência esse Deus.
   O que se dá, e a religião, ou as religiões, sempre cooperam com isso é uma agnosia, um desconhecer. E desconhecer é totalmente diferente de ‘estar desligado’.
   Somos desconhecedores de nossa verdadeira natureza, ou porque não tivemos acesso à essa informação ou porque fomos deliberadamente enganados permanentemente, como cegos sendo guiados por cegos. Só que nessa equação, alguns cegos aproveitaram mais que outros da condição da maioria.
   O caráter da Gnose, e que a fez ser perseguida historicamente, é que ela não aceita isso. Um gnóstico não aceita o desconhecimento, nem espiritual, nem sequer político, social, científico, ou de qualquer maneira. O gnóstico sempre busca conhecer!
   Essa qualidade essencial da gnose é a que a faz ser naturalmente rebelde para com o mundo, seja o mundo entendido como sociedade, seja o mundo entendido como cosmo, universo. Isso se dá não porque a pessoa que se reconhece gnóstica seja um revoltado, não! Totalmente ao contrária. É assim porque a índole do Espírito é justamente indomável, ele não se submete à nada que possamos perceber no horizonte do mundo, pelo menos quando está verdadeiramente desperto, no controle da mente, ou melhor, do coração humano.
   Se distende-se nesse ponto entre mente e coração justamente para se precisar o ponto de vínculação com a realidade na qual o gnóstico atua. E essa atuação é bem clara para o gnóstico, pois há o corpo material, algo conceituado como hilético na terminologia da Gnose, e há a alma, dita psique.
   Assim existem, de nascimento, as pessoas hiléticas, materialistas; existem as pessoas psíquicas, ou seja, mentais, intelectivas. Mas existem também as pessoas pneumáticas, ou seja, as espiritualizadas por natureza, e essas são as que se descobrem gnósticas, verdadeiramente gnósticas.
   Esses termos, todos gregos, podem apenas parecer palavras bonitas ou diferentes para se referir à conceitos comuns, mas expressando assim, por uma linha de intuição, podemos declarar uma verdade humana que não é facilmente reconhecida, e de tal forma podemos separar intuitivamente as formas de vida ou existência que convivem dentro daquilo que chamamos como um todo de Humanidade.
   O ser humano pneumático é aquele que ao longo do tempo, em diversas existências, vem trabalhando sob a orientação indomável de seu próprio espírito, esse trabalho é o labor pela individualidade, onde mediam as forças da autenticidade, da criatividade, da autoconsciência e principalmente da liberação para com a materialidade.
   Esse labor é estranho, e só podem o reconhecer quem passou pela experiência da descoberta de suas verdades pessoais, uma experiência de intuição que vem conceber uma verdade não da mente, mas do coração, pois do modo como ela é concebida vai muitas vezes contra tudo aquilo que o indivíduo aprendeu em sua vida cotidiana comum, em sua formação cultural, familiar, e até épocal.
    Por isso é definida no âmbito gnóstico como gnosis kardia, um conhecimento do coração. Dizer isso pode parecer contraditório ao leitor atento, mas ela revela a qualidade da atuação do Espírito junto ao ser humano. A fulminante luz da intuição pneumática abrange corpo e alma, reunidos naquilo que poderíamos entender como Psicológico, uma palavra precária, devemos admitir, pois trata de uma contradição muitas vezes não percebida, mas que propõe justamente aquilo ao qual o gnóstico não teme a se referir quando trata de seu conhecimento, que é o Paradoxo, o extra-ordinário.
   Pois só no âmbito do além do que seja ordinário, além do comum, que o Espírito realmente atua. O comum, o inferior, o casual é o mundo, ao qual o Espírito não pertence, ele é aqui um estrangeiro.
   Tudo que é do mundo, moral, valores, religiões, técnica, é estranho ao Espírito, e mais, mediante a lente desses conceitos edificados pela humanidade e que se apossaram dela como seus senhores, sob o olhar desses paradigmas, o Espírito é o que há de mais bizarro.
   Por isso a Gnose se infiltra no mundo pelo coração e não pela mente, pois de outra forma a mente a processaria e a faria se tornar não-espiritual, religioso, racional. Poderíamos dizer, com um pouco de paciência não muito comum aos gnósticos radicais, que ao hilético basta os instintos serem recompensados, ao psiquíco contenta-se que a mente jogue com seus artifícios, suas ment/iras, porque tudo isso à eles seja natural.
   Mas quando o pneumático desperta, sacudido vez ou outra por um incômodo que assalta seu pensamento, de que as coisas não são como nos contaram, que a realidade sobre as coisas que parecem importante na verdade é bem mais assombrosa do que se faz passar à luz do amortecimento do corpo e da alma, e então se sente desamparado pelas premissas do corpo e da alma, e se desassossega, e o desassossego se torna o prumo na relação dele para com tudo no mundo, o que se chama filosoficamente de estado de angústia, então a experiência desse conhecimento do coração começa a se insulflar na realidade.
   Com o bater do coração dissonante, o tempo parece correr mais devagar, ou mais depressa, e começa a se revelarem pensamentos inconcebíveis, pois não se sabem como se pode os conceber por não terem nenhuma causa visível, e o limite da existência estoura como bolha, e o nome e o ego que o possui começam a não fazerem sentido e parecerem insignificante diante da linha maior da existência que se apresenta por isso. A angustia demonstra saudades e ódios ancestrais, e também presenças e amores injustificáveis, toda uma extensa experiência imersa em um panorama de penumbra, de mistura de luzes e sombras que começam então a se imporem como verdade fundamental individuais… Mediante tudo isso então você sabe enfim que está seguindo o caminho de seu coração, seguindo sua voz pessoal.
   Na experiência do gnóstico então começam a surgir no horizonte da existência, como a aurora de um sol negro, algumas sincronias, a maioria, para os atentos, se dá como a confirmação através de outros, talvez indivíduos reconhecidos como mais sábios ou experientes, de coisas que você já tenha pensado antes, talvez tenha escrito como poemas, ensaios, talvez anotações de sonhos ou experiências cotidianas. Essas coisas quando vem se parecem como ecos paradoxais que definem conhecimentos mas de uma forma inversa, primeiro o efeito, depois a causa, coisas assim.
   A gnose do coração então vai se formando, pequenas centelhas aqui e ali, e depois quando se vê o incêndio está formado, mas se dá um passo, e o pasto seco incendiado já está distante, e o Espírito está levando seu fogo para outras escarpas, outras partes do sertão, desfiladeiros, e o espírito extraordinário logo está incendiando desertos, oceanos, abismo.
   Talvez por tanto conduzir o fogo do coração, o mundo decadente irônico tenha trazido seu fogo também para junto dos corpos dos seres humanos pneumáticos, e dado à eles experimentar na carne suas fogueiras, mas isso é parte da guerra que o Espírito trava contra o mundo, infelizmente. A brutalidade da morte e do castigo é da natureza e da natureza humana, respectivamente, pois quem já passou pela experiência de ouvir a voz do coração provavelmente já intuiu sobre a característica selvagem e cega do criador desse mundo.
   O gnóstico reconhece isso, que o mundo é um belo jardim para as bestas, que nele se deleitam. E que esse jardim, essa selva enfrenta à sua forma o ataque da alma, uma pulsão de ordenamento promovida pela razão, e a natureza sempre empurra no nariz da humanidade sua indolência, como terremotos, tsunamis, epidemias, secas, enchentes, e a alma cega brinca com isso querendo reverter as intempéries à provações divinas consolando-se com conceitos de culpa e purgações tão servil como se houvesse mesmo um sentido no sofrimento para além de sua função de fortalecer não a alma, mas sim a carne.
   À essa luta a mente chama civilização e retrocesso, mas nada disso ao fim engana o Espírito, ele passa ao largo de tudo isso, poder, dinheiro, convenções;  a voz do coração contou à alma e ao corpo o que tudo isso significa: Nada!
   Voltada para um reconhecimento do mundo, em construir uma sociedade e extrair da natureza o bem estar, o corpo e a alma estão perdendo tempo. Vivemos em uma prisão construída engenhosamente para protelar a revelação de nossa verdadeira natureza, que somos deuses, senhores da matéria e do espírito, e esse universo irá perecer, e nós aqui entretidos por dores e prazeres nunca iremos nos libertar disso se não prestarmos atenção à voz do coração. Prolongaremos por agnosia nosso sofrimento!
   Cito um sábio gnóstico atual para melhor exemplificar isso:
   “… os gnósticos eram conhecedores de um segredo tão fatal e terrível que os governantes deste mundo - isto é, os poderes, secular e religioso, que sempre lucraram com os sistemas estabelecidos da sociedade - não podiam permitir-se ver esse segredo conhecido e, muito menos, tê-lo publicamente proclamado em seus domínios. De fato, os gnósticos sabiam algo: a vida humana não alcança a sua realização dentro das estruturas e instituições da sociedade, porque representam, na melhor das hipóteses, apenas obscuras projeções de outra realidade mais fundamental. Ninguém atinge sua verdadeira natureza individual sendo o que a sociedade espera nem fazendo o que ela deseja. Família, sociedade, igreja, ocupação e profissão, lealdade patriótica e política, bem como regras e normas e éticas, na realidade de modo algum conduzem ao verdadeiro bem-estar espiritual da alma humana. Ao contrário, constituem, com maior frequência, as próprias algemas que nos alienam de nosso real destino espiritual.”*
   Temos então todo o aparato necessário para sermos livres deste mundo, o que devemos nos perguntar primeiro é: queremos compreender ou queremos acreditar? 


    Porque dependendo da nossa propensão que podemos definir nosso curso nesta existência. Entretanto há os que são aptos a crer, como um dom, e outros porém parecem não conseguir crer em nada. Talvez sejam esses poucos e raros os únicos gnósticos verdadeiros em atividade no mundo. A Gnose é conhecer, é compreender!
   São poetas, místicos, inconformados, desafortunados, parias desassossegados em geral que percorrem o mundo com uma centelha pronta a iluminar o matagal sem trilha da vida e com o fogo acesso desmascarar a sociedade de sua falsidade inerente, que se revela como nunca nessa época de final de ano, principalmente no Natal.
   Nós, gnósticos repercutimos com a rebeldia de nosso amor espiritual a máxima de que a razão que usam contra nós é apenas uma “grande loucura pública”, enquanto sorvemos a intuição “irracional” de nossos corações.

Consolamentum



Nem o Batismo da Água e do Sal

Nem o Batismo do Fogo e do Ar

Abrem o Plano Quadrimensional,

Como não têm o poder de salvar.



Como poderá existir uma Iniciação

Que redima equívocos cometidos,

Que conduza o Iniciado à Perfeição

E que cancele erros de tempos idos?



Tampouco a castidade e a austereza

Podem franquear a Porta do Pleroma

E conduzir ao Sumo Bem e à Beleza.



O Coração! Só a Voz do Coração

Pode transmutar o deletério coma

E realmente promover a Libertação.




* Stephan Hoeller in  A Gnose de Jung”, p.45, Cultrix.


***Consummatum est, anno domini MMXIV e.v***

12 de dez. de 2014

Por que existe algo ao invés de nada?



Meditações sobre o Nada

Prestai atenção: começo pelo nada. O nada equivale à plenitude.
No infinito, o pleno não é melhor que o vácuo. O nada é, ao mesmo
tempo, vácuo e plenitude. Dele se pode dizer tudo o que se quiser,
 por exemplo: que é branco, ou preto, ou então que existe, ou não.
Uma coisa infinita e eterna não possui qualidades, pois tem todas as
qualidades. A esse nada ou plenitude dá-se o nome de PLEROMA.
 (C. G. Jung)

   Por que existe algo ao invés de nada?

   Talvez essa seja a questão mais incrível que a mente humana tenha proposto a si mesma. E meditando sobre ela nos últimos meses, embrenhei-me na vasta mata fechada do pensamento que não encontra saída, e lá nos limites de minha capacidade encarei o fantástico assombro que a questão acusa.

   Tal questão é o Koan de toda Filosofia Ocidental, e ela impõe a quem se põe a pensar nela esse verdadeiro assombro!

   Penso na monstruosa extensão do Universo, com suas lá 400 bilhões de galáxias com a média de 100 bilhões de estrelas cada uma e um número extremamente alto de planetas girando em torno de cada estrela, cada sol. E penso na proposição recente dos Multiversos, só aí já se engendra uma insanidade que assedia o pensamento.

   Mas não basta pensar só sobre essas coisas quando se quer ponderar sobre o nada, há de se levar em conta também o tudo. Penso na disposição quântica da matéria, penso nas Supercordas e na Teoria M, e aquele assombro só pode aumentar exponencialmente.

   Na linha de pensamento já desvairada chego a admitir que o Nada adentra em tudo isso através da consciência humana, que tal conceito veio pela senda da linguagem, único lugar até agora onde eu achava que ele podia existir.

   Na Astronomia sabemos dos Buracos Negro, mas esses são uma estranheza à nossa terceira dimensão, e talvez nosso Universo tridimensional seja apenas uma estranheza contemplada a partir de um Universo quadridimensional que tenha colapsado em um buraco negro que fez surgir a tridimensionalidade!?!?

   Mas o Nada, seja o semântico ou o físico, é uma anomalia além de tudo isso, do nosso ponto de vista dualista, pois a mente humana só pode trabalhar sobre esses parâmetros.

   Meditando acerca do Nada, de minha posição existencial, a estranheza mental, a impossibilidade, o mistério de eu próprio existir e pensar sobre isso surge, é surpreendente que exista algo ao invés de nada.

   Para nós o Nada de inicio é o contraponto à própria dualidade, então, assim ele se distingue como algo mental, e é a questão que o Nada impõe que coloca a mente em outra sintonia para além dos parâmetros em que ela normalmente trabalha na realidade mundana. É o efeito do Koan na mente.

   Para os antigos Gnósticos, como Basílides, o nada é uma inferência que se pode tirar da anulação de dois termos contrapostos, mas essa anulação não remeteria à nulidade, mas também à própria plenitude. É o efeito paradoxo de se reconhecer intelectual que para existir, por exemplo, os pares Luz e Trevas, deve-se haver algo subjacente que comporte os dois, ou seja, algo infinito de onde estes opostos puderam se desvincilhar na dualidade e interagir enquanto o Universo existir.

   Isso por si, sustém uma forma de pensamento que pode apaziguar na mente a origem do nada, mas só enquanto esse é referido como plenitude, e a plenitude está fora do alcance da mente humana.

   Voltando ao nosso parco caminho de pensar, podemos então ponderar primeiramente: ou as coisas surgiram do nada ou o nada nunca existiu e assim o Universo sempre existiu, eternamente. São ponderações que não diminuem a estranheza, mas nos impõe já outra uma abordagem lógica.

   Mas se o Universo sempre existiu, há a questão de o que há fora dele, aí o nada surge novamente, e então nos cerca por todos os lados, mesmo que possamos chamar à “coisa” exterior de Plenitude.

   Assim o mistério aumenta. Fora do Universo, ou dos Universos, não há nada, nada de espaço, nada de tempo, simplesmente Nada.

   Pode-se dizer que lá fora pode estar aquilo que entendemos parcamente por Deus, então habitaria Isso o nada ou seria Ele o nada? Ou seria aquilo que se remetem os Budistas quando dizem Nirvana? Mas os Budistas dizem também que o mundo, o Samsara, é o Nirvana, o nada, a cessação.

   A mente que pensa sobre isso se aproxima já da loucura. O limite do nada é intransponível, pois o nada é plenitude, e amente humana não pode abarcar o infinito.


(‘Systema Munditotius’ de Carl Jung, sob a Serpente com 
cabeça de Leão está inscrito “Abraxas Dominus Mundi”)


Um Universo que Veio do Nada

   No meio dessas meditações porém, como uma Gnose sincronistica, encontro um livro notável, com algumas respostas sobre nossa questão inicial, e muitas coisas se ordenam, se esclarecem.

   Li a obra de Lawrence Krauss, “Um Universo que Veio do Nada: Por que há criação sem Criador” (da editora Paz & Terra - 2013), e nele o autor responde enfim, com evidências empíricas irrefutáveis como o nosso Universo veio a surgir por si mesmo do nada. A importância da obra é comparada por Richard Dawkins, no posfácio, com “A Origem das Espécies” de Darwin, só para se ter uma idéia como esse livro é especial.


   Levando em consideração evidências conseguidas pela Astronomia e pela Física de Partículas, Krauss responde a questão “por que há algo ao invés de nada?”, e sua resposta é: “porque o nada é instável!”

   O livro, bem mais filosófico do que científico, não decepciona em explicar empiricamente os argumentos de Krauss sobre o Universo vindo do nada. Seus argumentos partem sobre a inflação cósmica e o distanciamento em aceleração das galáxias umas das outras e a evidência de que nosso Universo seja plano, tudo isso vai corroborando para apontar a origem a partir do nada das coisas. Como isso se dá, o melhor é vocês lerem esse livro crucial para quem se pergunta sobre o sentido da vida, mas o que nos cabe aqui é a louca relação ‘nada-algo’ de nosso koan ensandecedor.

   A cerca de 13 bilhões e 720 milhões de anos atrás e um dia antes disso, não existia nada, ou melhor, havia o Nada. Então aconteceu algo: no nada uma flutuação quântica ocorreu, causando uma grande explosão, um grande bum (Big Bang).

   Krauss escreve a partir da página 109:
  
“O padrão de flutuações de densidade que resultam da inflação - surgindo de flutuações quânticas no espaço outrora vazio - revelou estar de acordo com o padrão observado de pontos frios e quentes em escalas maiores de radiação cósmica de fundo em micro-ondas. Ainda que concordância não prove nada, é claro, há uma visão crescente entre os cosmólogos de que, se anda como um pato, parece um pato e grasna como um pato, provavelmente é um pato. E se a inflação é de fato responsável por todas as pequenas flutuações na densidade da matéria e da radiação que mais tarde resultariam no colapso gravitacional da matéria em galáxias, estrelas, planetas e pessoas, então podemos afirmar com toda certeza que estamos aqui hoje devido a flutuações quânticas no que é essencialmente nada.”

   A energia do espaço vazio não é zero, algo sempre está surgindo, até nos dias de hoje, do nada. Partículas virtuais a todo momento podem pulular em um átomo para equilibrar energeticamente determinado sistema, e no momento seguinte desaparecem de novo, rumo ao nada de onde vieram. Pares de pósitron-elétron aparecem espontaneamente em um átomo de hidrogênio, por exemplo.

 (Representação artística das flutuações quânticas)

   No rastro de se entender como algo surge do nada, porém, Krauss nos introduz em outras questões ainda mais desconcertantes, que tem a ver com a própria existência humana nesse momento.

   Por uma sincronia cósmica impressionante ele revela que o único momento na história do Universo em que poderemos chegar à essas conclusões que a ciência está chegando são os nossos tempos, e impressiona então a inteligência humana ter surgido e se desenvolvido justamente no período que seria a “janela de observação” para o Universo. Em qualquer outro tempo, e aqui estamos falando em milhões de anos, no passado ou no futuro, não teríamos condição de saber que o Universo é plano, que as galáxias estão se separando em aceleração crescente, que houve um Big Bang, porque, principalmente no futuro, todas as referências empíricas que temos desaparecerão dos céus, o nada está voltando e tomando tudo.


Porque há Criação sem Criador

   Além da questão do alcance da ciência Krauss aborda também, como não poderia deixar de fazer todo bom filósofo, a questão da criação a partir de Deus.

   Para Krauss o Universo surgir do nada foi algo inevitável, e isso é atestado cientificamente, mas aí ele finalmente entra naquele campo semântico que abordei em minhas próprias meditações, e cabe a ele dizer o que realmente o termo Nada compreende, esse nada dos cientista é “algo”. E a ciência não responde os “por quê?” mas os “Como?”. Há uma sutil diferença então nas abordagens cientificas das filosóficas e teológicas.

   Então, nessa linha de raciocínio surge a questão humana, mais precisamente a questão da Consciência, palavra esta que estranhamente não aparece no texto de Krauss. Por que será?

   Tenho para mim porque justamente quando confrontamos o Nada levando-o a uma questão de consciência nós nos chocamos contra aquele dito “limite do nada” para o pensamento, o que tanto me atormentou e atormenta. E para Krauss há a duvida se algum dia a própria Ciência será satisfatória ao tentar abordar “algo que veio do nada”, já que para a ciência não basta simplesmente definir o nada como “não-ser”, mas em seguida ele sagazmente nos propõe lembrar sobre aquele par de pósitron-elétron que surge no espaço vazio do átomo de hidrogênio, nisso a questão está para além de possibilidade, é algo que se dá de fato.

   Nas páginas finais do livro de Lawrence Krauss, parece-nos então que há um recrudescimento. O Nada é o nada, o “espaço vazio”, e daí evidentemente surgem coisas, o espaço vazio tem peso, energia, flutuações quânticas, e era à esse nada que se referiam Platão e Tomás de Aquino quando se perguntavam por que havia algo, ao invés de nada, no espaço vazio do Universo.

    Mas isso é só um interlúdio no raciocínio, a citação no penúltimo capítulo parece dizer tudo sobre suas ponderações anteriores:

“Faça-se a justiça, mesmo que desabem os céus”
Antigo provérbio romano.
  
   Tudo que vemos, toda matéria, estrelas, planetas, patos e pessoas, tudo isso surgiu do espaço vazio, na condensação das flutuações quânticas no nada instável do vácuo, e é impressionante existir matéria, já que pelas leis da mecânica quântica e da relatividade se exigi que para existir matéria deve-se haver também anti-matéria, toda partícula deve ter sua anti-partícula.

   Então o que impressiona é o fato de como toda a matéria (partículas e anti-partículas) não terem se anularam mutuamente em algum momento do início do Universo. O que tudo leva a crer foi que houve um acidente inicial na origem do Universo, e a simetria que havia entre partículas e anti-partículas foi quebrada, e na anulação primordial da matéria com anti-matéria sobrou mais partículas, e bastava uma só, para explodir como Universo.

   Ou seja, nosso Universo ter acontecido foi uma pura sorte! Antes, enquanto reinava uma simetria material, havia apenas o nada, porém em algum momento, digamos lá, penso eu, uma partícula só de anti-matéria errou o alvo no turbilhão cósmico de explosão matéria-anti-matéria, e uma partícula pode dissonar na simetria e dar origem ao Big Bang. Daí se nota a instabilidade do “nada”.

   Nesse panorama todo, Deus é obsoleto, a incerteza sempre reinou sobre o nada, e uma hora era inevitável que ele cumprisse a possibilidade de ser algo.


Nosso Nada de Cada Dia Nos Daí Hoje

0 = 1 + (-1)

   Ao longo de suas explanações o ponto onde Krauss nunca chega é, como disse, sobre a questão da Consciência em si.

   Ele chega ao ponto de notar o fato arrebatador de poder a mente fluir justamente no momento em que o Universo pode dar respostas, e isso me faz perguntar então se há só acidentes no Universo, porém a questão da própria inteligência humana surgir pode caber dentro das probabilidades que o Universo e todo o Multiverso podem potencializar, então nessa infinitude, até mesmo o surgimento da consciência seria o cumprimento de uma de suas possibilidades latentes.

   No caso eu poderia apontar uma sorte em grau cósmico de existirmos agora. E o fato de Universo rumar para a condição de impor uma cegueira em relação ao seu reconhecimento científico como de fato ele é em sua natureza denota mais uma vez a fortuidade de nossa existência aqui. Se por um lado nem sequer conseguimos pensar sobre o nada, um dia o próprio nada limitará tudo que temos, e como se fosse um véu irremovível de Ísis, ele só deixou transparecer o sorriso maravilhoso da deusa enquanto ela por alguns momentos dançava.

  
   Pena o Deus cristão não dançar, e de nascença ser cego e paralitico como nos aponta a visão Gnóstica sobre Ele. Mas não acho que seja uma pena ele ser irrelevante para o Universo, pois apesar disso só engrossar o caldo do desespero niilista que me acomete, quando penso sobre o nada limítrofe para além de toda potência da mente em perscrutar, isso volta à minha mente como um portal, mesmo que seja um doloroso portal, por onde passa a condição humana como a única coisa que conheço que pode dar algum sentido à esse mundo e à todo o Universo.

   Esse sentido que o ser humano pode dar à sua existência, as ditas volições da alma, seja ele espiritualidade ou ciência, seja ele filosofia ou assombro puro, aí então posso ver como meu próprio nada interior pode emanar coisas significantes, que mediante ele, possa surgir também encantamento e prazer em estar aqui e agora.

   Aqui se realiza, nesse tipo de inteligência que aborda a questão do “por que existe algo ao invés de nada?” o resultado mental do koan máximo de nossa História com seres conscientes, como diz Krauss: “a própria distinção entre algo e nada começou a desaparecer, pois transições entre as duas coisas em contextos diferentes não são apenas comum, mas exigidas.”
   
   A Gnose aqui revelada é de um lampejo científico imprescindivel para se entender o mundo doravante, e não mais com a mente de Platão, Aristóteles ou Tomás de Aquino, é uma consciência que tem em sua vanguarda, na linha de frente da inteligência humana, pessoas como Lawrence Krauss e outras dezenas de grandes cientistas citados em seu livro, sábios de uma nova era, seres humanos que querem levar a humanidade à independência definitiva das sombras das superstições religiosas, não tornar impossível acreditar em Deus, mas poder livremente não crer no que as religiões organizadas dizem; mais do que Deus, elas sim são desnecessárias, redundantes, mal intencionadas e mal informadas.

   Quanto à nossa existência, apesar ou além do nada que nos circunda por todos os lados, um motivo maior surge, e é o fato de estarmos aqui nesse Universo, para justamente dar sentido às coisas.

(Símbolo Zen do Nada)