Afago de Lágrima

 

Hoje acordei
   com uma lágrima
      para cada um que se foi
   os mortos
      & os vivos...

Um rio de lágrimas
   para os vivos & os findos
      se afogarem... ou nadarem...
   & eu beber
      para afagar o nada que ficou
         de todos os idos & remidos,

Hoje acordei chorando
   pela saudade
      & pela maldade
   que a vida & a morte
      deixam ao longo do tempo
   nas distâncias náuticas inauditas
      que separam tudo & todos,

Pois se uma forma de esquecer
   faz parte do conformismo
Troco lembranças por lágrimas
   & mergulho sedento
      nesse despertar diário,

& se lembrar
   de quem está ausente
      dói & nada podemos fazer
Troco saudades por sorrisos
   pois a vida segue como rio
      & cada coisa se encaminha
         para seu afogar,

O afago de lágrimas
   é o único fado
      de quem sente a sede das saudades
   mesmo imerso nas águas doces do tempo
O sal das lágrimas
   vem do oceano de tudo que vivemos
      onde o rio que passa
         encontrou o que amar.      

 

Sereníssimo

 

"Minha laranjeira verde,

por que está tão prateada?

Foi da lua dessa noite,

do sereno da madrugada?

Tenho um sorriso bobo,

parecido com soluço

Enquanto o caos segue em frente

com toda calma do mundo..."

-Legião Urbana in 'Sereníssima'

Amanhece quase sem se ver
   o olho do Sol que se abre
fechando o abraço da noite

   & tudo não passa
  de uma discussão
      entre Leste & Oeste
pela primazia de algo que se repete

Esses dias de noites de Lua cheia
   irrigando pelos caminhos
      meus cabelos cinzas

   & os olhos castanhos
  castiços na visão da Lua abarrotada
     de luz do Sol & desejos estranhos

Me movo de um lugar à outro
   pesando & pensando
  sobre tudo que morre & tudo que nasce
& tudo que passa & fica

Mas o que permanece & importa
   é o que já nasceu meu
      & o que ainda virá

As melhores coisas acontecem
   sem quase ninguém
      ver ou saberem...

Sentinela

 

Aqui do lado de dentro
  está tudo escuro ainda
    pelos filtros da ocultação
Vem a aurora lá fora
  eu a chamo de estrondo
    grito de luz no ouvido da madrugada
      que agita as coisas quietas
        & escondidas no escuro
Espero a hora certa
  pelo crivo da claridade
    tal qual vampiro que não vai dormir
      mas que vai apenas se esconder da luz

É a beira do mar de fogo que nos alcança
  as espumas de átomos partidos na areia do mundo
É a maré igne
  que queima através do vazio que nos alcança
& nunca toca de fato a terra
  a não ser com luz & calor
& faz seu estrago de conserto no mundo
   lá fora... & aqui dentro também 
Eu, sentinela das portas fechadas
  vigilante dos espelhos
     porteiro dos currais humanos
Deixo o incêndio gritante entrar...

Dentro do Peito

 

Certa vez eu ouvi... por debaixo da pele, abaixo da carne... seu coração que batia...
Não havia panos... nem luz... era só os sentidos... você era real...
Não havia loucura... nem medo ou qualquer sentimento de perda...
Os sentidos não advinham o futuro... apesar de haverem instintos, são contra a extinção...
Certa vez eu ouvi... debaixo do seu peito... sem sentimento, sem cheiro... batia um coração...
Mas não havia espaço ali para a paixão ser plantada... só a insanidade a ser repartida...
Assim, por você... um dia, bateram dois corações... & os dois, sem sentido, extinguiram-se...

Atmosférrea

 

É a poeira presa no ar
   que já nasce contaminada
Na crosta do planeta
   com bilhões de cadáveres enterrados
& outros tantos espalhados
   ao ar livre
Rodando no espaço
   em vez de expulsar com a força centrífuga
O mal que habita na superfície
   atrai cada vez mais... tragédias universais...

Shàkti

 

...cuspo no rumo do bueiro
   um escarro sabor
      entre a imburana & a saliva
         & o gosto que nunca tive do beijo seu
          Parcival recolhido
     entre a coragem de lutar & o medo de fugir
   nesse caminho do meio
que trilho parcamente
Buda obscuro
   tentando se iluminar com as chamas da escuridão
      & a luz desejada de uma chama serena... ou morena
         do sorriso seu...

Consciência Inconsciente

 

Só quando você acorda
   percebe que enfim dormiu...

...você ganha ao perder
   se conscientiza ao não deter mais
      aquele estado que procura...

Só quando você desperta
   percebe a ignorância...

Imersos nessas correntes invencíveis
   fluimos na correnteza que é tudo
& é também... imperceptível
   como o Tao que não tem nome...