27 de set. de 2010

Dia de Eleição


Sonhei
   que um boi pastava grama rala em meio à areia de um deserto;
   e ele defecava por ali seu esterco verde que ia adubando o deserto;
      e no esterco havia um grande verme.
E havia também um cão que ficava em cima de um monte de areia
   vigiando o boi,
   e o cão descia e rolava no esterco e dele comia
      e comia o verme também,
         mas o verme não morria e vivia dentro do boi e do cão.

Sonhei então
   que nesse deserto haviam se formado três filas de pessoas;
Uma fila era enorme, uma fila era grande e uma outra fila era pequena,
   e as três filas pareciam rumar cada uma à uma porta diferente.

Na fila enorme
   haviam homens e mulheres
   e pareciam ter eles bilhetes na mão
      e iam felizes como quem está na fila para ir à um show,
   a maioria eram alegres e brincalhões, alguns estavam entediados e uns poucos sérios;
   mas todos eles estavam sem calças porque as haviam perdido,
      fato que à alguns constrangiam, mas à maioria era motivo de brincadeiras,
   ao que em suas nádegas estava escrito
      como se à força de correiadas e chibatadas:
         “ordem e progresso”.
E lá à frente da fila enorme ia o boi,
   e o boi mugia: “diiiveeeersão!”

Na fila grande
   haviam homens e mulheres
   e eram como palhaços, estavam fantasiados e coloridos,
   uns eram mímicos, outros agiam como marionetes,
      uns eram irônicos, alguns cômicos, outros estúpidos...
   e eles estavam todos sem camisas
      porque as tiraram para poder trocar,
   e tinham no corpo escrito como com tinta de propaganda:
      no peito escrito “promessa”, e nas costas escrito “interesse”.
E lá na frente dessa fila grande ia o cão,
   e o cão latia: “sufrágio! sufrágio! sufrágio!”

Na fila pequena
   haviam homens e mulheres
   e eram como se fosse pessoas importantes e sérias,
   todos vestiam roupas caras e faziam poses de enorme dignidade,
      mas não mostravam o rosto, coberto que estavam por véus negros
         onde se podia ler escrito em letras douradas:
             “Poder e Respeito”.
E na frente dessa fila pequena estava o verme.
   e o verme secretava com ajuda de um microfone: “deeeeemocraciaaaaaa!”

E sonhei
   que as três filas seguiam para três portas:
A fila enorme rumava para a porta de um abatedouro disfarçado de curral.
A fila grande rumava para a porta de um tribunal disfarçado de circo.
A fila pequena não rumava, mas já havia atravessado a porta de um luxuoso palácio.
E na porta dos primeiros estava inscrito: “trabalho, família, pão”;
E na porta dos segundos estava inscrito: “teatro, força, propriedade”;
E na porta dos terceiros estava inscrito: “tradição, fartura, poder”.

E no sonho
   eu me aproximei de uma praça no meio daquele deserto,
   e lá havia uma urna funerária
      e de dentro dela suas cinzas falava com uma voz digital, dizendo:
         “Tudo na normalidade...
           Estes são os caminhos da república...
           Estas filas representam democracia...
           Festa do povo...
           A política é o espelho da sociedade...
           A palavra de hoje é ‘pragmatia’...”

E ao lado da urna havia uma pessoa estranha,
   e ela me parecia estranha e me parecia conhecida,
   ao que eu a chamei de profeta-professor.
E o estranho me falou, assim que a voz digital da urna cessou,
   disse-me então como estranho profeta:
   “Se no esterco se sujar, gostarão de ti...
     Se do verme não se enojar, gostarão de ti...
     Mas é possível não se corromper, e então eles te amaldiçoarão em silêncio,
        e em público será chamado de tolo e hipócrita...
     Porque eles, os cães e os vermes criaram outra forma de pensar,
         confundiram por má-fé pragmatia e hipocrisia,
         e hoje os hipócritas são pragmáticos e os pragmáticos hipócritas
            e o esclarecimento é tolice
               e a tolice celebrada como informação;
      Pois eles falaram pelas bocas dos religiosos e dos intelectuais,
         eles falaram pelas bocas dos jornalistas e dos comediantes...”

E lá no deserto a fila enorme andava rápido, e o boi pastava;
E a fila grande andava lenta, e o cão rolava;
E a fila pequena não era fila, mas uma ciranda de roda, e o verme se contorcia
   e se deleitava em prazer no seu próprio visgo.

Então disse-me o estranho como professor:
   “O que não deixa sujar,
     O que não deixa adoecer,
     Imuniza o boi, purga o cão e mata o verme:
     Educação & Amizade & Prosperidade...”



E lá no deserto os da fila enorme gargalharam dementemente, e o boi se assustou;
E os da fila grande riram nervosamente com escárnio, e o cão rosnou e latiu alto;
E os da fila pequena estavam sérios, e o verme se contorceu de raiva!

E no sonho então
   o boi com seus chifres atacou o estranho
      e mugiu: “subversivo, rebelde, satânico...”,
   o cão com suas presas defendeu a urna atacando o estranho
      e latiu: “anarquista, desordeiro, irreverente...”,
   o verme com sua astúcia penetrou no corpo estraçalhado do estranho
      e verbalizou: “ridículo, desinformado, rancoroso...”

E depois de ter feito isso os três alegres de seu jeito comemoraram, em festa,
   e o verme com seriedade contou ao boi em forma de noticiário:
      que o verme é servo do boi e o nutre e preserva;
   e o cão com carinho contou ao boi em forma de novela:
      que o cão é quem defende o boi dos perigos do deserto e lida com seus dejetos;
   e então o boi com canções grotescas e piadas agradeceu à eles
      e pediu ao cão e ao verme em forma de oração:
         que lhe desse a educação para trabalhar e ganhar dinheiro,
         e  a amizade para com aqueles que estavam próximos dele,
         e a prosperidade do saneamento das fomes...
E assim o verme e o cão
   lhe deram a competição, o patriotismo e os venenos,
      o emprego, o futebol e o álcool...
E o boi se sentiu como o rei do deserto
   e pensou consigo que dali não queria sair mesmo,
      pois pastava grama magra com areia suja e água poluída
         mas tinha a lei, a segurança e a diversão,
   e tinha no cão e no verme amigos dedicados que o protegiam de outros bois,
   e assim foi, crescendo e multiplicando, em corpo e miséria...

E no fim do sonho já
   me vi só na praça deserta com o cadáver despedaçado e corroído do estranho,
     enquanto uma enorme tempestade de poeira e lixo se levantava no céu;
Então o cadáver ainda murmurou para mm:
   “É certo estar errado? É errado estar certo?”
E ainda em um último suspiro indagou:
   “É justo ser injusto?...”
E era um dia triste, feio e onde não havia respostas para nada...


Então eu acordei! E era Dia de Eleição!


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