6 de mai. de 2013

A Festa & o Fático

(Exercícios Escritos de Meditação Gnóstica)

Eu não entendo a felicidade, mas sei que ela existe, pois a vi no rosto das pessoas dentro do salão de festa, e a vi expressa nos corpos das pessoas na pista de dança, mas nem por isso eu a entendo.
   O que talvez me cause estranhamento na felicidade, e faça ela ser uma desconhecida para mim, seja o fato de que neste estado de euforia nós confundamos felicidade e alegria. Eu não sei...
   O que eu realmente sei é que me encabula o fato de nas festas o ser humano estar tão aberto a se jogar imediatamente nos braços dessa alegria então, assim que uma música comece a ser tocada, e a pista de dança se inunde da expressão da felicidade e da libertação através das expressões corporais de dança e do espírito comum de uma alegria desencadeada a partir da premissa de que estamos festejando.
   Festejar é uma celebração humana justamente referente a uma ocasião de jubilo, de alegria, de felicidade.
   Ricos e pobres, crentes em Deus e ateus, homens e mulheres, todos os tipos e classes se jogam sempre que podem na circunstância de expressar sua alegria quando reunidos para uma ocasião especial, porque tal ocasião preenche de uma certa dose de contentamento os corpos e as almas de todos os presentes.
   Assim, boa e farta comida jubila o corpo e o enche de alegria, muito mais à medida que à ele é suprida doses de álcool e/ou outras substâncias. Isso talvez indique uma primordial sensação de nutrição temporária que extravase desde os tempos imemoriais de carência geral, fome, medo e dor, que ative algo no cérebro e faça o corpo se agitar, rir, dançar, externalizar sua sensualidade benfazeja.
   Provavelmente nesses tempos precários os bandos semi-humanos, quando se fartavam de uma caça mamute, acrescidas por cogumelos alucinógenos e abundância de água, se lançavam a dançar em volta do fogo dentro das noites escuras da pré-história acudidos por batidas em pedaços de madeira ou algum instrumento primitivo de sopro, e depois disso no escuro das cavernas fétidas por flatulências se entregavam à uma orgia cheia de abnegação.
   Hoje, sob a luz elétrica sempiterna que espanta qualquer escuridão, até mesmo a escuridão necessária para se ver a luz das estrelas que agora foram supridas pelos brilhos dos vestidos das mulheres, hoje, com nosso espírito civilizados, nos achegamos à uma festa como convidados para celebrar os motivos de jubilo da sociedade, e tão bem vestidos comemos do bom e do melhor que o dinheiro à disposição pode então comprar e depois dançamos e dançamos cheio de alegria, pois agora a dança é nossa orgia, pois se não mais praticamos o sexo grupal, devemos suprir essas necessidades atávicas com a dança, a mesa, o luxo.
   E para suprir a dor mansa que nosso corpo se engendra, não mais em caçar grandes monstros de carne farta, mas monstros mais interiores, onde na relação humana cotidiana, buscamos suprir, aliviar, dispor, fazer, tudo para ganharmos a carne do dinheiro com a qual compramos todas as outras carnes, e legumes e bebidas e ópios também. Assim, caçando de nosso jeito especializado e muitas vezes injusto podemos mesmo comprar a diversão na qual nos entregaremos por um motivo nobre ao jubilo.
   Nosso holocausto da caça é a culinária, nossos cogumelos selvagens são o chocolate e a cerveja, nossa orgia primordial é a dança, e nossa alegria é tão somente a carência e a busca da felicidade. E a festa em seu total segue já um padrão espiritual, não inteligidos por todos, mas sempre manifesto à nível subconsciente onde todos vão para tentar engendrar nas suas existências a dimensão da felicidade. Se si consegue ou não, isso é outra questão!
   Primeiro nos retiramos de nosso espaço comum cotidiano conhecido. Enfeitamos os nossos lares ou vamos à um salão de festa especializado.
   Então instalamos o espaço sagrado. Enchemos de cerimônia a própria Cerimônia. Chamamos o pontífice, que deve tomar para si o altar, acima de todos os convidados para as núpcias. Há também seus auxiliares, ministros experientes como magos que devem se servir da música, em coro, capelas, bandas, para invocar os deuses dos sentimentos do corpo, do coração e da alma, cantando, louvando.
   Logo entram os escolhidos, sempre em procissão, denotando dignidade. Os patriarcas e as matriarcas, a força e a proveniência do sangue é anunciada à todos que ali compartilham uma ligação de fato ou de amizade com o líquido da vida escondido dentro de todos os corpos, o mais secreto e universal sinal de união entre os seres humanos e que se expande à toda  natureza e cosmos através dos animais e dos seres vivos que possuam o sinal indelével de vida contido na informação genética.
   Far-se-á ali presente o esposo, o recebedor, a representação da meia força total, o macho, o candidato escolhido a se lançar na paragem do patriarcado, comprometido com a união pelo amor ou pelo interesse, e há sempre o interesse, por mais elevados que seja a vontade até o amor, é sempre o interesse, a busca da felicidade. Ele é o que se põe na posição de ter o mesmo destino que sua outra metade.
   Então, no apogeu destes momentos iniciais do ritual adentra noiva, ela é a beleza encarnada, representa a pureza, denotado em sua alva túnica, ela é a prometida, a aurora dentro da noite, a novidade que chega ao altar.
   O altar é o portal à câmara de núpcias, onde diante o sacerdote e a audiência como testemunha se realiza a operação mágica do enlace, mediante as leis dos homens e a lei de Deus.
   Ali, com o noivo e a noiva presentes, se desenrola a sugestão ancestral no inconsciente de todos os presentes que já começa a desencadear energias subliminares em todos, os já unidos se achegam, os comprometidos sorvem da tensão do momento, os livres e solteiros são assediados pela força dos noivos. Uma mensagem circula para todos, em sua profunda força humana superior.
   O que é admoestado é a vitória do homem e da mulher. A sugestão profunda das forças do provedor e da virgem. O aviso e a censura da ordem sobre o caos, a formalidade de tudo que precede o caos permitido da conjunção de corpos e almas, mas do que uma lembrança dos êxitos e falhas de todos os presentes, dos casais e ex-casais, dos solteiros e dos ex-solteiros, se expressa ali o sinal contra a incorreção de se ser feliz sozinho, um presságio da queda atroz promovida pelos deuses do sangue e do cativar contra o que fora um dia o ser perfeito, o andrógino universal, que a se bastava e que não rendia graças aos deuses, esses deuses do sangue e do cativar.
   A núpcias é muito mais do que o esforço humano para retornar à paragem da perfeição pelo único caminho agora disposto ao ser humano, à núpcias se releva o ato de contrair, tal qual contraímos uma doença, ela significa uma redução, uma promessa, uma obrigação, com ela se ganha parte de outro mas se perde algo de si.
   Esse perder, que é celebrado inconscientemente sobre o altar diante o sacerdote, deve ser suprido psicologicamente com a honra mútua, pois se a fêmea perde a virgindade e o homem a libertinagem, eles ganham a honra de serem só um para o outro, de corpo e alma.
   A noiva, ultima expressão em nosso mundo da esquecida Sophia, a Sabedoria Divina, se entrega ao noivo, a expressão conhecida do Cristo, familiar, mas nem tanto, do Verbo Divino. Eles fundaram no mundo um novo tipo de sangue, que será concretizado no nome e no sangue que correrá no rebento advindo de sua união civil e sexual, antecipada pela aliança, o anel que representa o circulo que se fechou quando da comunhão do casal do alimento de seus corpos e almas, que será materializado só quando o herdeiro de seus nomes e de seus sangue se fizer presente na face da terra. Tudo isso está expresso naquele momento, na porta da câmara nupcial.
   Efetuado tal ato de magia sagrada, todos, os noivos recém-casados e todas as testemunhas podem agora adentrar na ante-sala da câmara de núpcias, na câmara comum onde enfim irão extravasar sua alegria, encher o corpo dos alimentos concernentes ao corpo, e encher a alma dos alimentos da alma.
   É ali onde surge a felicidade aparente ou a alegria que não consigo entender.
   Há a sugestão da graça, a sugestão do prazer dos casados, a sugestão dos significados e dos sentidos de tudo que foi rememorado no altar, na cerimônia.
   Todos então parecem se esquecer da carência individual de cada um e da carência geral do mundo inteiro. Não há menção da indigência humana, somente arranhada pela presença dos que servem aos convidados, mas eles estão sendo justamente pagos para servir, um dia eles também comemoraram e irão comemorar em outros lugares, e também serão servidos, e esquecer-se-ão da miséria do mundo no grau em que podem esquecer. Eles também procurarão a felicidade na alegria de comer e dançar.
   Assim mesmo a tristeza me penetra, é uma tristeza da falta de sentido de todo aquele sentido apresentado na forte significância da festa. A tristeza ou a não compreensão talvez me falem de uma solidão particular, ou de uma falência pessoal, já que não danço, não entro na orgia, não comemoro junto da maior forma de expressão da busca da felicidade, talvez mesmo por não compreender a alegria ou por me aferrar na distinção enorme desta para com a felicidade.
   Talvez eu pense demais! Ou talvez eu saiba que a alegria seja um sentimento e a felicidade seja uma ciência! Talvez eu entenda ou não entenda o motivo de ser o que somos. Talvez me impregne a inveja ou o pessimismo. Talvez eu esteja fugindo da realidade ao convidar a permanecer em meu pensamento a realidade, a indigência, a pobreza e o sofrimento do mundo que por algumas horas ficaram lá fora. Talvez isso seja hipocrisia, talvez não. Talvez seja só fuga.
   E há muito a dizer sobre fuga, porque ela pode vir urdir sua cerca de espinhos no âmbito dos discursos das pessoas, que adentre na significância do real e do momento impetrando discursos e entendimentos sobre o que quer dizer a riqueza e a pobreza, sob o prisma de dogmas religiosos escutados nos altares de outras igrejas onde verdades particulares são ditas à respeito das glórias que um Deus dê à quem creia nele e o sirva. Isso serviria para explicar, mas não justificaria nada, e só prolongaria o discurso.
   Sim, há mesmo ali, naquele espaço para se extravasar a alegria um discurso implícito e absorvido pelo ego sobre às promessas dos deuses dos homens, há todo um discurso sobre a nobreza e a riqueza concedida pela graça do louvor à Deus, mas coitados dos que assim pensam, pois não justificam o encontro da felicidade, mas apenas abonam o extravaso da alegria.
   Entremente, em um grau ou em outro, somos todos imersos em alegria dentro da festa. Há prazeres para a boca e o estomago, há prazeres para os olhos e para o ego, há prazeres para a alma, e há prazer até para quem trabalha e serve. Haverá prazer para o noivo e para noiva é claro, e haverá prazer nas orações do dia seguinte dos que amam ao seu Deus.
   Então, mediante tudo isso, procuro me esforça e chegar à um entendimento sobre o que não entendo, toda essa alegria.
   Ela não é conquistada, ela é exposta, ela vem de dentro das pessoas, não é algo que vem de fora, apesar de alguns poderem dizer que é o espírito de todo aquele momento que as tomou. Se assim o for mesmo, seria um espírito menor, como uma euforia ou uma espécie de pânico coletivo, sempre seria um exagero, independente de suas causas justas ou não.
   E como exagero ela denota carência, não supressão. O influxo de um ritual profundo, a barriga cheia por delicias, a mente esmaecida por álcool, música e erotismo, o corpo zelado por finos panos e perfumes, a beleza e o bom gosto do ambiente e da decoração, tudo isso não supri uma carência inerente às pessoas que se entrega à orgia permitida no momento.
   Falta algo ainda! Como são ingratos os convidados!
   As pessoas recebem tudo, mas seus atos apontam para uma carência ainda. Mas não é culpa de ninguém, não é culpa dos noivos, não é culpa de Deus.
   A entrega à alegria é parte da disposição da demência humana em geral. Somos insaciáveis. Somos tolos e loucos por atenção. Dançamos para chamar a atenção para carências que não temos consciência, mas que o corpo e a alma sabe, eles sempre sabem de toda a pobreza inconsciente que carregamos, e pior, que nenhum ritual é capaz de suprir, mas só aumentar.
   Talvez no fim de toda expressão de alegria esteja o reconhecimento indesejável e tornado subliminar de que vamos morrer, de que tudo passa. O ritual sagrado, a festa, a saciação, o prazer, tudo que damos o nome de “alegria” comporta o sentido de que o profano, a cotidianidade, a fome e o sofrimento voltarão com o fim disto tudo. E pior, está subentendido na alegria, e talvez ninguém note, que ela não durará para sempre.
   Mesmo os que se apeguem à crença de um Deus provedor e benfazejo que prove através destes eventos sua proeminência para com seus devotos, ao pensar assim eles estão apenas diminuindo o que seja Deus, pois Deus não pode ser um deus das coisas passageiras. E mesmo que haja os argumentos de uma promessa de vida e festa eterna em um paraíso, há ainda a morte para implicar a falência da própria festa agora, mesmo como prova terrena do poder deste Deus.
   Toda alegria é contraposta à Felicidade, pois a felicidade não é passageira, ela é o humor da eternidade. A alegria não pode ser nunca e nem em situação nenhuma uma promessa da Felicidade, pois ela aponta por demais para o contrário do que a Felicidade quer dizer, nada passageiro pode sugerir algo sempiterno, pois vincula as pessoas ao erro do mundo.
   No salão de festas, espelhos colocados providencialmente com um ângulo voltado para o teto revela uma significância psicológica de um ato falho sobre toda a festa.
   Nele se espelha não só mais a parte superior do salão onde reflete a imagem de velas acopladas sobre ornamentos de ferro belos. Lá dentro pode-se vislumbrar um outro salão, de onde o olhar atento pode dar o sentimento de silêncio e vazio daquele mundo paralelo.
   Deste reflexo mesmo emana o silêncio do outro salão, e esse silêncio à quem consegue percebê-lo e mais alto que a própria música que embala a dança. Lá dentro está a pura calma, como a própria calma que está no espírito que busca a felicidade.
   Dirão os alegres que aquilo é apenas um reflexo e por isso uma ilusão forçada aos sentidos. Mas a alegria expressa no salão de dança é também apenas um reflexo da profunda frustração interior de cada conviva ali presente.
   Aquele reflexo cheio de silêncio é o verdadeiro banquete do espírito, onde a felicidade se encontra, para além do passageiro, para além das carências do mundo que foram expulsas do salão de festa pela música e a comida, pela dança e pelo afastamento da fome.
   O reflexo no espelho fala da vitória da felicidade sobre a morte, pois o reflexo e a ilusão ali expressas relata a ilusão e o reflexo que a própria vida desvairada se impõe ao fugir da morte.
   O que o futuro trará de toda aquela festa e do motivo de sua comemoração também passará, sejam relacionamentos, filhos, fartura, fezes e cansaço corporal. Tudo passará, assim como passou minha incompreensão sobre a alegria, meu desentendimento sobre a felicidade.
   Eu não vi essa compreensão no espelho dos rostos felizes a extravasarem sua alegria na pista de dança ou na pista de frios, eu a vi no espelho eterno da Sabedoria, na profundidade e no silêncio do reflexo de meu próprio espírito que não se preocupou com o fim ou com a morte, mas com aquilo que nunca acaba, pois nunca teve princípio.
   Eu vi, ou senti isso, a partir da própria Felicidade, não porque eu a estava procurando, mas porque ela me encontrou quando eu não me fechei na alegria passageira da insatisfação no divertimento, mas quando me abri para o contentamento eterno da satisfação do entendimento.
   Não sou tão alegre como o mundo acha que eu deveria ser, mas sou tão contente quanto meu espírito compete ser à medida que eu evoluo.


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