19 de set. de 2013

Karnak

i

Hoje de manhã vi um gato amarelo,
estava encolhido
em posição de esfinge,
sua face felina era grave
como se uma grande dor o consumisse,
como se ele estivesse entorpecido
pelos eflúvios desse sofrimento;

Ali, na rua, à luz do dia,
imóvel & exposto aos olhos indiferentes de todos
ele morria em sua pequenez
de uma forma que à mim pareceu conter algo de dignidade simples,
um desencarnar cheio de incompreensão & dor,
porque os animais não entendem
porque sofrer
porque morrer;

De sua pequena boca
escorria um fio grosso de sangue
manchando o asfalto que com nada se incomoda,
somado à frieza das máquinas
que tudo trucidam sobre o betume duro,
o pequeno gato
em sua insignificância cheia de profundo existir
abandonava este mundo
ganhando todo sossego
que a clara luz da passagem
pode doar no fim de qualquer existência;

ii

Mais tarde
desenterrei pirâmides em um ferro velho
como se fosse o sarcófago astral do gato amarelo,
um portal transcendental para a alma felina,
para que no submundo
galgasse sorte melhor
do que morrer sem sentido,
a pirâmide aponta para isso
caminhos humanos devendo se tomar,
Será que entender o sofrer & o morrer é destino melhor?

iii

Quando o dia já era velho,
em um mesmo tipo de sarjeta
onde vi o gato sangrando pela boca,
assisti três crianças
se banhando na vala de um bueiro de estrada,
eram três crianças miseráveis
eram três reis, três faraós, três múmias vivas,
sepulcros ambulantes dessa civilização
banhando-se no rio subterrâneo dos bairros pobres;

iiii

Esse grande sarcófago que é a cidade
abriga em seu labirinto encantado
a dor & a injustiça,
diante sua sedução urbana
eu sempre fico a me perguntar:
“Quando deixaremos de amar a cidade?”

Os gatos trucidados
& os meninos explorados
querem saber, em sua morte diária:
“Quando começaremos a amar as construções de nosso espírito?”

A necrópoles disfarçada
só aumenta o peso de sua lápide
seduzindo & querendo fazer nos orgulhar
da grandeza da cidade,
auto-vias, sarjetas brancas, engarrafamentos,
poluição, lixo sobre lixo...

A necrópoles se esconde em nossa consciência
como um verme nas entranhas do pensamento
& quer se apossar dos campos de nossa imaginação,
animais esfolados & pessoas miseráveis
colorem o concreto & o vazio de sentimentos
para dar significância ao aglomerado inumano;


v

A chacina & a humilhação diária prossegue,
prosseguirá, infindável,
o sangue dos gatos & os banhos dos meninos no esgoto
tem seu lugar apropriado,
tudo vai ao ritmo do ocaso,
ao fundo uma música de motores & ventania de poeira...

Hoje, quando o dia terminar
um gato a menos vai sofrer
& três fantasmas a mais vão seguir
rumo ao destino da necrópoles,
serão todos cadáveres ao ar livre...


“Bem aventurados sejam os gatos que morrem pela manhã.
É deles o portal da grande pirâmide
que há de abrigar as almas nulas
dos que vivem & partem com felina dignidade,
sem tomarem parte de mais uma calamidade.”



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