10 de dez. de 2012

Considerações Contemporâneas 2

A Anti-Verdade
ou
Como deixei de me preocupar com as aparências
 e comecei a amar meu gato wabi-sabi

(Um texto nada orignal, otimista ou com sentido) 

   Pela manhã me veio um pensamento sério (desses de sexta-feira que anuncia um final de semana sem dinheiro):
   “Uma civilização é construída com escravos. Depois de muito tempo surge no seio dessa civilização a mais avançada das ciências!”
   Onde a Ciência é como uma flor que brota no centro da pilha de mortos humanos que adubam com sofrimento as baterias da civilização.
   E ironicamente é a ciência que tem o poder de dizer o sentido do homem e de também destruí-lo. A ciência é uma espécie escandalosa de consciência do mundo, fria e sintética, mas original, fruto da capacidade de intelecção (adoro essa palavra, intelecção, não sei por que) humana.
   Quando uma civilização está madura o bastante, surge no seio da sociedade dois ou três oponentes complementares (algo como tese, atíntese, e síntese?), o cientista, poeta e o economista, eles são a soma e a negação de tudo que foi o pensamento humano até então. Religião, filosofia, técnica, política...
   Então o cientista e o poeta serão primeiro um só, se confundirão erigindo uma ciência poética e uma poesia científica, então finalmente eles se separarão (por questões técnicas) e disputarão o atributo de destruir a civilização que os gerou. Ao economista cabe a pecha de ser um sábio destinado a pensar e influir na vida de toda demais civilização de escravos.
   Os poetas reclamarão uma volta ao arcaico, os cientistas uma fuga para o espaço, e os economistas de dar seguimento à vida no mundo. E nesse meio tempo os restolhos de pensamento do caminho, religião, filosofia, técnica, política, que estão mais próximos da sociedade, terão as armas necessárias para incendiar a montanha de cadáveres que é uma civilização, e finalmente o farão, pois essas instâncias menores (ou maiores) têm um sentido de identidade divina.
   Primeiro incendiarão suas próprias verdades na fogueira da hipocrisia, sem nenhum medo de parecerem hipócritas, pois falam pela verdade única. Depois incendiarão o pensamento com a polêmica da moral definida, já que o pensador é uma espécie de porta voz da racionalidade. Então porão fogo no senso de comunidade com o distanciamento tecnológico, afinal na distância é mais fácil expor opiniões radicais ou ridículas. E aí o Nero Final será o político fantoche de egos coorporativos, aqueles que amam a fantasia do poder e se contentam apenas com uma corrupção lucrativa.
   Além disso, o incêndio penetrará nos bunkers da economia, que mesmo sendo um acordo sem realidade de fato, é bem inflamável, pois é onde mora a verdadeira essência de uma civilização, seu assassino, seu Cosmocrator, e o Deus Lucro incendiará o mundo inteiro, somente no intuito de recomeçar, recomeçar, começar de novo o eterno teatro da chacina humana. Se auto-destruindo ele é eterno pois ele é uma Fênix, ou  melhor, uma lacraia, precisa sempre de fogo para provar que contém vida e é eterno. Assim é que o economista, o Anti-Fausto, venderá sua alma e ganhará a concessão de decidir destinos, pois escravos não podem decidir sobre isso.
   Afinal uma civilização se faz de escravos. E o melhor escravo é aquele que crê servir a um senhor poderoso. E o que há de mais poderoso a não ser um imortal. Pouco a pouco em uma sociedade altamente informacional, aquele que tiver a capacidade mental de observar o fluxo dos gráficos econômicos será o pequeno senhor da civilização. Hoje mesmo já podemos encontrar muitos desses seres semi-divinos habitando em seus palácios.
   Enquanto isso o sangue dos homens rega os jardins suspensos da cidade reluzente, os músculos de homens movem as engrenagens dos elevadores e os motores dos carros, os ossos de homens são os alicerces dos arranha-céus, o suor dos homens é o preço de seu orgulho na fila de empregos por mais uma semana de sonhos de riqueza, suas mãos são as mãos que sufocam crianças até a fome lhes definhar, suas bocas são as bocas que consomem o holocausto animal, suas pernas são as pernas que movem as passarelas da moda onde cadáveres ricos desfilam, seus braços são os braços macabros que carregam as armas para os frontes de guerra, seus narizes são os narizes que aponta para o céu clamando por mais uma inalação do fedor das drogas que amansam, suas costas são as costas das praças que reúnem zumbis do consumo em suspensão do julgamento, e seus olhos, seus olhos são o órgão atrofiado e indiferente que jubilam-se na orgia de ver todo seu corpo apodrecer no tempo por mais uma esperança que nunca chega. O homem, quer dizer, o escravo, é a matéria prima da civilização.
   A massa de manobra do economista, servo tecnocrata dos políticos, aliás, a conspiração economista ganha cada vez mais espaço de ação e poder temporal na civilização, pois tempo sendo dinheiro, aquele que visualiza o rumo que o dinheiro toma é por suas qualidades inerentes o tecnocrata superior.
   A melhor matéria prima para se moldar é a do escravo traidor. E há uma abundância de oferta deste produto. Uma civilização eterna de escravos maltrapilhos cheios de bugigangas que seguem para o moedor de carnes cego da auto-traição. Da mútua traição. Da traição disfarçada. Da traição escancarada. Traição é traição, e uma civilização só pode existir enquanto existir deslealdade entre os escravos. Todos os níveis de deslealdade.
   Agora mesmo fazem uma farra via satélite comemorando a decepção de todas as profecias. Agora mesmo um bando de semi-símios escancara a graça divina em quarenta canais de televisão de seitas religiosas e horários milionários pagos somente com dinheiro de doações. E a civilização dorme em paz sob as bênçãos do deus do lucro, e por mais que digam o contrário, por mais que exultem diante de seus livros sagrados, por mais que os milagres aconteçam, por mais que seus porta-vozes apareçam descontraídos e bem vestidos em propagandas, eles sabem entretanto que não estão no controle de nada. Eles só servem. Eles só traem. E são bem pagos para continuar mandando provisões de graxa humana para a máquina de triturar da civilização. Economistas, padres, pastores, monges, eis os melhores tipos de especialista no negócio da civilização.
   Alguns deles são até sinceros, mas a sinceridade é como o patriotismo, o último recurso dos covardes, dos traidores da raça humana.
   Os templos, as escolas, as rede sociais digitais, a policia não são nada mais que a sincera verdade da civilização. Uma verdade usada como recurso midiático, como arma  perfeita. Mansidão, razão, liberdade, controle. Esperança, lógica, conforto, segurança. Amor, certeza, interconectividade, propriedade. Deus, profissão, consumo, funcionalidade. Medo, desemprego, pobreza de espírito, repressão. Dogma, miséria, futilidade, tropas de choque.
   Finalmente, na calada da noite ou ao meio dia sob o sol de Parador, dividirão de novo os nacos de carne a serem misturados com o concreto dos palácios, dos altares, do púlpito, do quartel, da bolsa de valores, onde um verme corrói tanto os pavões da justiça da suprema corte quanto o frango covarde e falacioso da democracia. Terminado o festim, nunca farto ele seguem em frente, rumo ao órgão da próxima desestabilização, da próxima comissão, da próxima faxina, a próxima crise, o próximo programa de domingo, a próxima propaganda estatal em uma revista privada, o próximo evento esportivo, a próxima chacina, a próxima aparição da Virgem, o próximo grande livro do guru, o próximo natal, o próximo ano fiscal, moda, festa, frase, sucesso, anjo, polêmica, pacote, aparelho, DVD, atentado, descoberta, doença..., a próxima traição, a modernidade que justifica o avanço da civilização.
   O homem atual nunca será o exemplo bom da sociedade que sustém, pois não há homens, só há escravos, e o escravo nunca é modelo de nada, o escravo é a matéria prima da civilização. O modelo do mundo é o traidor, é o fantoche, é o ator, é a mentira. O cego.
   É o aparelho mais moderno, o remédio de última geração, a moda do próximo verão, a nova semente geneticamente alterada, o novo corte de cabelo, o modelo do ano de carros e motos, a nova programação do hardware, os novos aplicativos para baixar, o bóson de Higs, a continuação da série, a lâmpada econômica, a churrasqueira saudável, etc. Em cada lançamento a mentira e a traição da eterna novidade tão velha como o modelo anterior.
   A Mentira Ideal no mundo meta-platônico que vivemos é a Verdade. Uma civilização se faz de escravos e depois a verdade é deixada no centro do jardim das delicias para os escravos se matarem mais ainda por ela (uma civilização nem precisa de armas de destruição em massa, o próprio avanço da civilização é uma arma de destruição em massa, vide o aquecimento global, as metrópoles, a nossa comida industrializada, etc.).
   Porque a verdade é mesmo uma mentira repetida, ou ao menos, repetida pelo âncora do jornal do horário nobre, que não informa mais do que superficialidades, porque a verdade, a verdade mesmo, seria insuportável para a audiência (conheceis a verdade, e a verdade te libertará!?), ou mesmo porque tempo é dinheiro e não há espaço para se explicar tudo que se passa onde a verdade de fato atua, nos bastidores, nas entrelinhas, na cabeça do economista ultra técnico. A verdade está lá fora, e deixe que fique lá, pois cheira muito mal para passar no horário nobre.
   E se, Oh! Escravo, tens a verdade como pauta em tua vida civilizada, é por que bem te comportas para ir edificando uma civilização. Honesta, temerosa a teu Deus de escravos, boa para teus pequenos filhos escravos, segura para teu bom emprego escravo, limpa o bastante para tua higiene escrava, alegre o bastante para tua felicidade escrava, bela o bastante para tua escravidão por beleza, sempre jovem, loira e bem sucedida, com os cabelos perfeitos, os dentes saudáveis e os seios grandes e a bunda farta para sustentar pernas grossas como todo bom puxador de carroças exemplar deve ter, para se exibir como alguém de sucesso no desfile cotidiano do arrasto dos arados pelas ruas asfaltas da cidade de escravos. Vendendo todas as formas de cobiça nos intervalos da desinformação.
   Eis que chegamos então aos tempos da última traição. Ela se pode notar nos rumores de guerra sem sentido, como tudo que os homens fazem. Família, povo, crença, vaginas e cinema. Ela se pode notar pelo número de toneladas de lixo recolhidas diariamente das ruas. Ela se pode notar pelo preço de uma vida. A última traição pulula nas galeras das torcidas de futebol e distribui diplomas nos botecos onde universitários vão encher a cara de álcool. Os rumores da ultima traição são ruídos de esperança e prosperidade afinal! A vida é bela e os pessimistas são só um bando de fracassados mesmo.
   Quanto mais desemprego mais as ações se valorizam. Quanto mais destruição mais os mercados que se abrem. Quanto mais escasso os recursos mais se valoriza a informação. Quanto mais as igrejas estão cheias mais o medo é renovado e todo tipo de confronto intelectual imbecil é possível. Quanto mais drogas são produzidas e vendidas mais o sistema financeiro e a indústria química se fortalecessem (já que a droga é o produto capitalista perfeito por excelência). Quanto mais liberdade mais remédios para ansiedade serão empurrados goela abaixo. Os rumores nunca foram de tanta esperança, pois esperança significa oportunidade. E oportunidade tem no manual de instruções “pisar na cabeça do concorrente”.
   E se entendes os rumores de esperança como indícios de degradação, de vã soberba, isso é só porque tua forma de escravidão está só um pouco mais abaixo ou acima de onde a fome se instala e gera os circuitos da prosperidade. Talvez tu penses demais em sexo ou tenha nojo disto. Talvez tu sobrevalorizes demais tua inteligência ou desdenhe de ter que dar trabalho a teus pés. Talvez tu sejas rico ou pobre demais, talvez perdeste mesmo o foco da vida quando saiu rumo ao teu emprego seguro dentro de seu carro popular com o adesivo traseiro “presente de Deus”.
   É porque a tua forma de escravidão é daquela que pensa firmemente que combate contra o mundo a partir do centro nefrálgico onde a fé se confunde com o castigo, o coração que bate por não poder fazer outra coisa, ou os genitais que gozam sem poder fazer diferente. O contrário disso é possivelmente sua condição existencial: insensibilidade! Infarto da indignação, impotência estética.
   Mas o que há para além da civilização? Choro e ranger de dentes? O que é a civilização? Choro e ranger de dentes? Logo teremos religiosos, filósofos, técnicos e políticos loucamente corajosos o bastante para efetivar uma punição coletiva definitiva contra todos que já choraram muito e o bruxismo de seus dentes nivelou a arcada dentária durante o sono. “Vitam Impedero Vero”, quando li isso em latim pensei que queria dizer que “a vida impedia a verdade”, mas é justamente o contrário (malditos Romanos! Maldito Schopenhauer! Quão distantes uns do outro, quão malditos!).
   Em um mundo onde mulheres espancam crianças e velhos. Em um mundo onde homens infligem burcas a mulheres. Em um mundo onde animais vivem em zoológicos. Um mundo que não tem tribunais para Estados, que comporta paraísos fiscais, que disponibilizam foguetes nucleares e químicos, que moleques são médicos, advogados e delegados, que reis caçam elefantes e tigres, que cantores ditam o comportamento, onde atletas e coristas são as pessoas mais bem remuneradas... os traidores só podem pedir por uma punição definitiva para eles mesmos: A vida impele-nos à verdade. Que a civilização prossiga!
   Cientistas e poetas prepararam isso, economistas aproveitaram do sono da razão e agora mesmo vendem tos juntos seu holocausto.
   Eu sou um poeta. Os cientistas estão por aí. Os economistas não perdem tempo conosco, apenas fazem cálculos, cortes e previsões. Nós todos só oferecemos sabedoria, dados, consciência, enfim, uma faísca para o incêndio. A não ser pelos economistas, eles mantém seu próprio fogo frio aceso.

   E para não dizer que não falei das flores, dou aos escravos como eu, um último ultraje: se a civilização é o circuito cibernético da escravidão, o que seria o indivíduo sozinho?
   O individuo é um escravo livre o bastante para pensar em fugir, irresponsável o bastante para cogitar tipos de liberdade, louco ao ponto de sugerir uma salvação.
   Salve-se a si mesmo, e ao tentar estar fazendo isso, essa traição final a todas as traições, talvez entenda como enganar ao enganador, e fazer com que todas as ilusões sejam enfim reveladas, pelo menos para você, ali só e totalmente desamparado a luz lhe alcançará, penetrando por onde ela deve e pode penetrar, na fissura gritante de toda mentira.
   Gosto muito de cantar “... nós gatos já nascemos pobres, por isso já nascemos livres...”, é quase um hino para mim. A civilização se faz de escravos porque ela gera riquezas, e os que seguram o chicote hoje em dia, os economistas, fazem seus prognósticos para que continuem a existir os que são servidos e os que servem.
   Já foi dito que os poetas não servem mais para nada. Antes disso disseram o mesmo da filosofia, a ciência ainda pode construir armas melhores (e teorias que expliquem o campo), são muitos importantes e necessários os religiosos, os políticos, a policia e os professores, mas o mundo necessita mesmo de economistas? (Essa pergunta não foi para os escravos membros da sociedade civilizada, mas para os indivíduos).
   Eu sei que não há muito alento na escolha entre ser escravo e ser renegado (mesmo porque a maioria dos renegados são incríveis fracassados, pelo menos é o que a civilização diz de quem perde, dos que negam seu óbvio). Mas aí está a diferença de se ser massa, gado, ou um gato livre sem dono contra o qual nenhuma injustiça poderá ser cometida mais (mesmo porque não há para quem reclamarem).
   Faça um favor a você mesmo, destrua sua prisão. Há até uma lenda rondando por aí que diz que apesar de não termos nascido para ser feliz, ainda podemos ter humor. E mesmo que digam que o humor é o traço particular do ser humano, eu ainda acredito que o humor é o traço fundamental de quem tenha inteligência, e os escravos se diferem por isso também.
   Para que servirá isso? Veremos depois do fim do mundo.
   Conheça a verdade, e a verdade te revoltará! Ria de si e serás livre!



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