28 de out. de 2025

Não-Ser

 

"Eu sou a base nula
de uma nulidade"
-Heidegger

Estou no espaço entre dois abismos
Uma fossa de água suja sob meus pés
Uma parede de areia ao alcance das mãos
Tudo isso sob a aurora estrondosa que carrego nas costas
Tudo isso ao sabor das cores diante minha visão

Eu vejo os animais fingidos passarem ao longe... rumo à ruminação
Eu vejo as bestas de carga depondo seu peso... na força da rendição
Eu vejo belas feras dançarem a ciranda da inconsequência... são mais ferozes que os que rugem & choram
Eu vejo os animais de lata pálidos, cansados da ferocidade... rumo à extinção

Fiz minha casa na correnteza
A estrada... fluxo de pensamento... o futuro passado
Fiz meu lar na procissão solitária
Exílio... peregrinação... caravana de um homem-árvore
Fiz um refúgio caótico cujo centro é o altar de nossas carnes
Nem isto... nem aquilo... nem isto...
Fiz o caminho de costas trocando a noite pelo dia
Amor-fati... eterno retorno... o grande meio-dia...

Entre abismos & bichos voo
Cabe em mim os espaços vazios
Mas nunca a mediocridade
Não coloco barreiras ao prazer
Mas o amor prezo pelo que sei
Defini aquilo que sou
Mas ainda falta muito para o Ser ser o que é



23 de out. de 2025

Netuno

 

Abro meu peito ao frio
Em um abraço invisível de todas lâminas cegas
Que junto ao sopro de Netuno com suas lágrimas de diamantes
Fatia & trança em chibata
A folha alta & velha do coqueiro estéril

Meu peito alvo & desprovido de abrigo
Exposto nesse vendaval, à lâmina, à chibata,
Desola a carne & fribila o verbo
Que recanta de ouvido Zé Ramalho
Nesses amanheceres congelados

É uma momentânea idade das trevas
Um lapso de Inverno dentro da Primavera
Em que se libera do Inferno
Seu bafo frio servido de carnes congeladas
Em um beijo de lábios azuis dormentes
Que nunca acontecerá...



22 de out. de 2025

O tempo (in)definido

 

A ponta aguda
Dos ponteiros do relógio

Seu corte é limpo
Profundo... raso...


Ele disseca a carne
Separa a realidade

Opera a idade
Decepa a as escamas das horas



Eu te dou uma precisão imprecisa
Uma convenção entre iguais díspares

Te revelo uma hora... minuto...
Eu minto, sem importância





Te situo, citando o ponteiro
O corte findo, rápido, momento

Eu te imiscuo de espaço-tempo
Me aproximo... distancio...







Estamos no tempo
& o lemos no vento

O lemos nas trincas
De nossa paciência com tudo




15 de out. de 2025

Achados & Perdidos

 

Esse mundo é tão pequeno
& nossa pequenez é tão grande
   achamos tudo & perdemos... nada
Esse mundo é tão pequeno
& mesmo assim as pessoas somem
   somos coisas nos perdidos & achados
Esse mundo é grande o suficiente
Para se ir embora ficando aqui
   perdemos tudo & achamos... nada
Esse mundo é grande o suficiente
Para nos perdermos & nunca mais achar
   somos achados & perdidos pelas coisas



13 de out. de 2025

Estradas Estaladas

 

Da estrada me interessa muito mais o estar do que o ir, o rolar do que chegar, a caravana que acampa, o acampamento que se levanta

Da estrada me interessa muito mais as trincas por onde brota as ervas que implicam o desleixo & o passar do tempo, do que o pavimento cáustico que um dia foi sinal de civilização

É que essas rachaduras são vislumbre de uma promessa que ninguém me fez, são desejos de algo a se realizar que não depende só de mim, pois na civilização vive o verme & prospera o chacal

Na estrada caminho no aguardo de tudo desmoronar & nunca mais pisar atrás nos passos que passavam ao largo do que me detia, parado; na estrada vive o que se move & prospera o que não preda



8 de out. de 2025

Letras Miúdas

 

Primeiro a gente ama...
   é assim!
& depois dá tudo.

O resto é coisa vaga à altura de um contrato

Primeiro a gente se gosta
Se atrai
   se faz bem & mal
Depois se trai
   em causa justa
Pelo interesse
   necessidade
      tudo mais!

O amor é indiferente
   à causa & efeito
Mas é severo a respeito
   ao efeito de sua causa
Onde nenhum afeto
   será irrelevante!
Ou perdoado!!!



5 de out. de 2025

Pedaços

 

É assim...
Mais um tudo
   que passou...
Quase sempre igual
   pelo menos do que me lembro...
De outras vezes
   outros casos & acasos...
Parece que tudo volta
   à um tal estado natural...
Nunca falhamos
   em decepcionar...

Sempre assim...
Um tido tudo
   ou quase tudo
Infinito não sei o que
   amor, amizade, ódio, paixão
Que se vai
   gasto, mesmo que vasto
Porque para nós
   abortos da finitude
Tudo é pequeno & pouco
   apesar de nossa grande fome

É assim sempre ...
Quem é feito de pedaço
   em pedaço
Quase nunca percebe
   o ponto em seu despedaçar
Quando deixa de ser alguém
   & se torna algo
Quando o sonho passa
   & só fica o vazio da realidade
O que sempre fica
   é o que nunca está!



3 de out. de 2025

Primevas

 

Pela estrada sob o parto luco-fusco do dia
   o vento fresco da primavera
      embala entre um corte de espinho
      & um beijo de seiva
         o impulso do corpo
         que segue imerso, nesse meio...

Não penetramos
   em nenhuma profundidade
É só um quase-flutuar
   na superfície-casca do mundo
      que oscila como cortina ao vento...

Eu vejo & sinto
   mergulhando nesse tempo ameno
Como em fluido mais leve que água
   ondulo também... sou partícula cindida
      sou onda interferida pelas coisas
         dentro da paisagem inexata
        & primeva, incontida...



1 de out. de 2025

Out

 

Rolaram os ventos
Rotacionou o frio
Passou uma estação
   um mês, um dia, um rio
...a primavera está lá fora!

Tudo isso que passa & não passa
Os dias, o sono, a fome
   as contas,  as somas & negações da vida
Tudo isso que não passa & passa
As dores, os amores
   paixões, excessos, vazios

Rolaram os eventos
Rotacionou o frio
Passou uma época
   um querer, um projeto, um brio
...a primavera está lá fora!